Seis retalhos no mapa da memória, cada um dividido em episódios de diferente dimensão,
conforme a incisão que deixaram nos sentidos.
Crónicas da Idade Menor, ou Aventuras (e Algumas Desventuras) de Um Rapaz de
Aldeia, é o subtítulo do primeiro trabalho literário de Fernando Faria em segunda edição,
com distância de uma década em relação à primeira. Pelo meio outros vieram, de maior
fôlego na construção narrativa, mas com igual depuração da linguagem.
A nova versão de TERRA MÃE vem aumentada, revista, polida como um diamante na
transparência da prosa. E podia chamar-se de uma dezena de formas, tantos e tão
poéticos são os títulos de cada lembrança de um rapazinho em crescimento, maravilhado
com as revelações da Natureza que ainda hoje o seduzem.
Era o menino que gostava de estar engripado (Empresta-me a tua Gripe) para se livrar de
alguns pequenos trabalhos impostos pela ordem familiar. Podia faltar às aulas, receber o
carinho adicional dos mais velhos, alguma guloseima desejada. Aquele que descobria,
deitado no sótão de um palheiro, às escondidas, O Milagre da Vida, o nascimento de um
jumentinho que logo se punha de pé. Ou o valente que desafiava os fantasmas da
escuridão, transido de medo, para mostrar aos mais velhos que era capaz de enfrentá-lo.
Não tinha receio do escuro, mas preferia Os Cheiros da Luz…
Nunca tinha pensado nisso, mas sem pretensões de análise sociológica, o autor faz um
retrato de um tempo, antes da “inodora” luz eléctrica chegar, em que o azeite, o petróleo,
a resina das cavacas em labaredas, iluminavam a casa e aconchegavam a família. Talvez
fortalecessem os laços afectivos, tanto como naquele dia chuvoso, a construção de uma
carreta de madeira, abrilhantada pela buzina estridente de uma bicicleta.
A chuva já não era indesejável, passava a ser encarada como elemento propício a
trabalhos criativos no aconchego do lar. E O Fórmula Um era ele e nenhum outro. Podia
correr a aldeia no seu veículo novo para fazer recados à mãe e pavonear-se à vontade
diante dos outros rapazes. O pai pedia-lhe “serventia” para o construir? Ele dizia que sim,
seria até seu escravo, se fosse necessário. Mas afinal só era preciso olhar, ter o prazer
indescritível de ver o trabalho paterno, do mesmo modo que o pai tinha o coração cheio
de júbilo, por ver-lhe o entusiasmo no rosto.
Indescritível, escrevi eu? Descrever de forma desembaraçada, como um Trindade Coelho
levado pelas emoções, é mestria da escrita de Fernando Faria. E nunca falta a nota de
humor que põe um sorriso até no relato das “desventuras”. O menino que a certa altura
precisava de ajuda do oftalmologista e esperava realizar o sonho de usar óculos, não tinha
sorte com o único modelo da loja. Saía-lhe em rifa o mais “pindérico”, reservado na altura
só às pessoas idosas, E não se livrava na escola da alcunha de Caixa-de-Óculos. Só mais
tarde e por simpatia do destino, uma roda de um carro lhe esmagava os anteriores e
conseguia finalmente um modelo de aros decentes.
As narrativas de Fernando Faria levam-nos para um tempo de dificuldades económicas, de
desamparo social, de perturbação política, mas por que ficamos rendidos às suas
paisagens bucólicas, à magia de uma criança que gostava de ouvir As Sereias do Pinhal e
se perdia, sob um aguaceiro, à procura delas? Por sorte tinha reserva de orações para
“situações bicudas” e o milagre acontecia… Seria merecedor, o menino sensível que
auscultava na tristeza da mãe, no dia em que deambulava pela praia e se esquecia das
horas, um carinho que o confortava e remorso por tê-la afligido. Afinal que importância
tinha ser O garimpeiro de Conchas se essa conquista lhe custara a ela tanto sofrimento?
Rendemo-nos a Ode de Outono, à descoberta de outras paisagens como O Mar da
Nazaré, ao Amanhecer visto da laje no topo da colina, tanto como a Floresta Mágica, ou
Oeste, porque estão ali as descobertas essenciais da infância, a linha divisória entre vida e
morte, a consciência das desigualdades, até entre remediados e pobres. E as noções de
bem e mal, a revelação de tanta beleza como o nascer do sol, ou a luz morna do
crepúsculo, que ainda hoje gosta de fotografar.
Oeste , Milho-Rei, a Festa da Padroeira, são quadros de beleza campestre nos pontos
colaterais da memória de Fernando Faria. Mas há um capítulo dedicado à avó Joaquina
que foi para ele a mais grata referência da infância, o seu ”esteio”, o ponto cardeal
marcante. O Adeus, Avó!, creio que encerra aqui o fim do luto, a caminho de um
apaziguamento sereno com a tristeza da perda, agora mitigada por uma doce saudade.
Faltam muitos elementos importantes para fazer justiça ao livro, até porque Fernando Faria
é um homem da Justiça, com uma carreira na magistratura do Ministério Público. E até
hoje tem muito orgulho em “ ser membro de pleno direito da respeitável confraria dos
caixas-de-óculos”. Só os tirou para a fotografia que ilustra o texto da badana de TERRA
MÃE, editado pela 5livros.
Aqui está o exemplo de uma magnífica recensão! Que esteja escrita de forma brilhante nada surpreende, tendo sido Helena Ventura Pereira a fazê-la. Mas, para além disso, é altamente cativante: as palavras que usa e a forma como engenha as frases levam-nos atrás. Seguimos este menino de aldeia no registo, que suponho auto-biográfico, das suas peripécias e experiências de vida como se estivéssemos a vivê-las nós também. Do nascimento do burrinho ao ‘cheiro da luz’, autêntica descoberta para os citadinos, estou convencida.
Dá vontade de ir já obter o livro para começar logo a lê-lo.
Quero fazer uma correcção que diz respeito às últimas linhas desta crónica: afinal o autor usava uns óculos sem aros na fotografia…Nem aqui traiu a confiança da sua “respeitável confraria”.
Que belíssima crónica , tão emotiva que me deixou com vontade de ler o livro.
A Crónica? Excelente, com o defeito único de me ter deixado sem reserva de palavras, para eu falar do livro que já li duas vezes. Até o título, TERRA MÃE, lhe invejei para prosas minhas.
É como Fernando Faria que eu gosto de escrever, em que o respeito pela correção da língua não fere a sua leveza atraente como capa de histórias que, afinal, são reveladoras da profundidade das memórias que marcam a vida.
Que dizer-lhe, leitor? Se não leu, não perca. Eu tenho os meus dois exemplares (primeira e segunda edições) no meu recanto de livros preferidos.
Quero deixar aqui um público agradecimento à distinta escritora Maria Helena Ventura pela brilhante recensão ao meu livro. Um trabalho que me deixa cheio de orgulho e contribuirá seguramente para uma maior divulgação e conhecimento da obra.
Bem-haja, Maria Helena!
Fernando Faria
Boa tarde tarde Fernando, nada me deve, por favor.
Devemo-nos todos uns aos outros, de um modo geral, simpatia e solidariedade, mas neste caso particular só dediquei umas linhas a um livro bem merecedor delas e de outras mais enfáticas.
De qualquer modo, fico sensibilizada, acredite.
Maria Helena Ventura