Queria escrever sobre os pastéis de nata do café do Sr. Joaquim, ou sobre a caminhada junto ao Tejo desde o Cais do Sodré até à discoteca onde batiam em putos. Sobre os dias que, de dia para dia, se tornam mais compridos. Sobre a abelhinha mais doce, agora adolescente, a quem já não sei ao certo que prendas oferecer. Queria escrever sobre a viagem que vou fazer em breve. Sobre a beleza que habita o mundo…
Ela ligou depois do jantar. Falou com calma, serenamente deu-me a notícia. Fiquei sem saber o que sentir. Convidou-me para ir na véspera e pôs-me à vontade para pernoitar na noite seguinte. Querida amiga, tão minha amiga. Na sala onde se pode fumar realizámos que não fez ainda dois meses desde que ali estivemos a cantar e dançar porque era ano novo.
Vestidas de cinza, branco e preto, rumámos até lá, eram duas e meia, faltava pouco tempo para o tempo parar. Estava com receio de ter um ataque de riso ou de choro e ali era mera figurante. Tinha chorado por ele mais do que uma vez entre o dia da notícia e aquele momento, ao contrário dos meus outros que já estão no clube. Com os meus outros engoli a dor mas a cabeça vingou-se. Não se pode fugir à dor. Chorei então por eles, por ele, por todos que entraram para o clube. Fiquei zangada, ainda estou. Estou muito zangada com todos eles.
Voltámos a casa quase em silêncio, descansámos. Depois com os micro adultos que por ali cirandavam, fizemos compras, ofereci-me para fazer alho francês à Brás. Enquanto cortava tudo às rodelas muito fininhas, encontrei um pouco de tranquilidade. Cozinhar serena-me.
A miúda micro adulta, sem se impor, tornou-se na ajudante perfeita. Rimos com a matriarca que refilava porque o jantar estava a demorar muito. Jantámos finalmente e voltámos à sala onde se pode fumar. Os micro adultos fizeram-nos companhia e a alegria andou à solta por umas horas. Já sozinhas, lembrámos e partilhámos mil histórias sobre ele, brindámos 10 mil vezes, encontrámos algum alento nos copos de vinho tinto.
No dia seguinte saímos da cama muito tarde, comemos sobras e piza. Entrei no silêncio do autocarro e na alegria de abraçar o gato em casa. Dormi treze horas.
Acordei com a pressa a gritar-me. Tinha de tratar da comida e ir ao advogado. Cheguei adiantada, sentei-me num banco a enrolar um cigarro. O dia estava como eu, cinzento rosa e só aí processei que ele se tornou sócio do clube.
Entrei no escritório, saí furibunda comigo, fiz um erro tão crasso que agora o processo judicial regressa à casa da partida.
Voltei às escadas, acendi outro cigarro e eis que surge o meu amor alemão com os anos marcados no rosto. Está ainda mais bonito. Pus-me na ponta dos pés para o abraçar, beijar, abracei-o de novo. Fez aquele sorriso incrível e disse-me ao ouvido: “The love you’re given you take it with you all your life”. Desapareceu sem me dar aquele beijo suave com que nos despedimos tantas vezes. Entrei no metro, entrei em casa, abracei o gato e sentei-me à mesa.
Queria escrever sobre as vítimas do sismo, as atrocidades da igreja católica, a inflação que nos engole o dinheiro e a qualidade de vida, os gangs de putos cheios de ódios raciais. Queria escrever sobre a fealdade do mundo.
Tudo o que consigo fazer é agarrar o fio com um coração negro e um prego espetado no meio que assenta no peito. Era suposto ser apenas um fio, mas não. É o símbolo do clube. Maldito clube.