A VER PASSAR A MORTE

As fotografias das campas dos mortos têm uma notável eloquência. Nelas, os mortos estão sempre vivos, lindos e felizes…

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Entre os muitos projetos de escrita que deixei por concretizar, houve um que, por mais absurdo que pareça, me deixou particularmente frustrada: conhecer os pensamentos daqueles velhos que via diariamente sentados no banco público junto ao cemitério da Marinha Grande.

Situado em zona central da cidade, marcando o início da Avenida da Liberdade, uma árvore frondosa é uma espécie de placard, em que a agência funerária noticia os mortos. Primeira página da necrologia, a ela têm acesso todos os passantes. Mas são sobretudos os ocupantes do banco que têm o privilégio de ver quem morreu. Também naquele lugar se mantêm sempre que mais um caixão encabeça o cortejo fúnebre que entra na necrópole. Destapam a cabeça em sinal de respeito, benzem-se, apertam as mãos contra o peito, ficam em silêncio. Depois recomeçam a conversa quase em surdina. Falarão certamente do último morto. De onde era, onde morava, de que morreu, quantos anos tinha, deixa filhos, netos…?

Observei durante anos esta cena e alimentei a curiosidade sobre aquela meia dúzia de velhos, que se iam revezando, ocupantes do banco. Pensei entrevistar estes homens que, em aparente tranquilidade, ocupavam os seus dias a ver passar a morte.

Fascinam-me estas cidadezinhas, onde os lugares dos vivos e os dos mortos coexistem sem conflito.

Atraem-me os cemitérios, a expressão pública de sentimentos em frases cliché inscritas nos mármores de todas as cores, que se alinham naquelas avenidas floridas.

Enternecem-me as mulheres que zelosamente mantêm as campas limpas e com flores sempre frescas, exalando perfumes neste insólito jardim.

Aproveitei, faz uns anos, a polémica da localização dum novo cemitério, futura morada de outros mortos, para uma incursão jornalística no tema da morte. Entrevistei o vereador responsável pelo pelouro dos cemitérios, percorri as estreitas avenidas de rigorosa geometria, com paragens aqui e ali, suscitadas pela fotografia de rostos conhecidos. As fotografias que identificam os habitantes de cada campa, a sua última morada, têm uma eloquência fascinante. Nelas, os mortos estão sempre vivos, felizes e bonitos, como gostam de recordá-los os familiares que lhes  preparam a mortalha, escolhem  a fotografia para a posteridade e encomendam as  inscrições fúnebres de eterna saudade.

A morte anónima teve honras de primeira página no jornal local. Sem parangonas. Apenas uma discreta cruz, símbolo do ritual cristão. Mas uma primeira página que permitiu a cada leitor pensar nos seus mortos, chorá-los, e seguramente, muito assunto de conversa, ou melhor, muita conversa sobre o mesmo assunto.

Mesmo limitada agora na minha mobilidade, continuo a passar por lá, quando alguém me transporta de carro. E ainda tenho a mesma curiosidade: sobre o que falarão aqueles velhos que escolheram não um banco de jardim, mas um banco rente ao muro do cemitério, para porem a conversa em dia, enquanto veem passar a morte?!

1 COMENTÁRIO

  1. Texto a reler mais do que uma vez. A ligação perfeita entre a vida e a morte e a velhice e o tempo a escoar-se e a geometria das campas floridas e a ternura dos entes queridos. Outra dimensão da vida. A vida apressada em que teimamos em correr. Parabéns, Alice!

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