Esta foi apenas uma das várias vezes em que desci ao inferno hospitalar. Mas foi a que me permitiu começar a perceber, com clareza, o que os abutres financeiros e políticos estão a fazer ao SNS.
A cena: domingo, 16 h.
Minimamente informada sobre a minha situação, cheguei em transporte particular. Fiz a primeira triagem 15 minutos depois. Um record absoluto, tendo em conta que havia quatro ambulâncias à porta.
Descrevi os sintomas.
Fala do doutor: - Então o que veio fazer para aqui?! Devia ir para cirurgia. Eu: - Não sei, fui triada e encaminhada agora mesmo.
Sigo para a sala de urgências, na cadeira de rodas só com um travão e um apoio. Arranjo lugar num cadeirão. Uma sala de 15 cadeirões que servirão também de cama, para quem tiver a sorte de poder mover-se.
Antes das 19 h, já tinham vindo 6 enfermeiras e até um médico para me tirar sangue para análise e meter um cateter. Parecia haver uma hierarquia de competência para apanhar uma boa veia que não rebentasse.
Antes das 20h, já tinha um cateter, mas sangue insuficiente para as análises pedidas pelo doutor. E tinha uma maca que seria a minha cama até à meia noite de 3a feira. A número 26. Nestas quatro dezenas de horas aqui vividas, vi, ouvi, vivi o verdadeiro pesadelo hospitalar. Não há palavras que consigam descrever este inferno, mas tentemos.
A sala das urgências de pulseira amarela fervilha de ação. Assisto a duas mudanças de turno antes de ser atendida por um médico. Pouco tem para me dizer. Pede mais análises, exames.
As equipas de enfermeiras e de assistentes operacionais são incansáveis. Movimentam-se como podem por entre um desfile de macas que entram continuamente. Um espaço para 23 boxes, atinge as 53.
53? 67, 79… Numa segunda-feira à tarde.
O médico responsável pelo turno nestas urgências tem de tomar decisões. Ouço-o ao telefone. Não sei com quem fala. Tem de recusar receber mais doentes. Começar por recusar doentes via verde com sintomas de avc e enfarte? Aceitar todos sabendo que podem morrer por falta de assistência.
De cada maca se ouvem pedidos: - Senhora, ó senhora, senhora enfermeira, senhora enfermeira, faz favor, faz favor, faz favor... Elas ouvem, e vão dizendo: - Já vou, vai já.
Cada doente sente que tem prioridade. Que é único. Com direito a tudo… Se estiver lucido. Quando uma enfermeira para junto dum doente, fala com calma: tem de esperar senhora, vê que mal temos espaço para passar. Temos de respeitar a ordem dos pedidos.
Elas tentam organizar-se, retorcem-se para chegar aqui e ali. E precisam de mil olhos. Doentes em delírio, querem levantar-se, arrancam os tubos, de oxigénio, dos soros. Querem levantar-se, ir embora, ir a casa de banho. Não sabem quem são, onde estão.
Ao meu lado uma doente em delírio vive um quotidiano imaginário. Tem muita roupa para pôr a secar. Ralha com alguém que não sabe esticar a roupa. Subitamente a roupa é a mortalha que a preocupa. Quer o fato azul.
E entram macas, mais… macas. Chegam às 70 num espaço para 23.
Uma doente a gritar há horas, quer ir embora, enrola os tubos do soro no pescoço: “tirem-me daqui, quero morrer, deixem-me morrer.” Acorrem vários enfermeiros. Cortam os tubos, dão-lhe mais um calmante.
Da ala dos cadeirões, um homem exige sair:” sou quadro militar de patente. Quero ir embora”. O médico do turno tenta chamá-lo a razão. Ele não ouve. Quer ir embora. O médico tenta mais umas vezes. Desiste. Diz-lhe que tem de assinar um documento. Ele diz que assina tudo, se puder ir embora. Mas ameaça.
Tudo isto acompanhado por um coro continuo de gritos: - Senhora, ó senhora, senhora enfermeira… E as respostas: - Já vou, já vai, um momento…
E os mil olhos controlando tudo e todos. Um doente que arranca a algália, um que quer levantar-se e ir ao WC. Os que por decisão médica não podem comer gritam que estão a matá-los a fome. Que vão fazer queixa. Um outro, em delírio, conta a sua ida para França em 74. O médico já de outro turno, recebe uma sala de urgências onde não se consegue circular.
Não há palavras para descrever este inferno, que médicos, enfermeiros e assistentes vivem diariamente por uns míseros mil e poucos euros, 900 euros, 700 euros por mês.
No terceiro dia fiz todos exames e tenho diagnóstico. Posso voltar para casa. Volto, noite dentro. Com a raiva a crescer-me no dedo, o vómito na garganta.
Bancos financiados, administradores da TAP com prémios inexplicáveis! Não podemos aceitar. Cresce-me a raiva no dedo. Vejo e oiço o ministro da saúde. As suas declarações dão-me vómitos. O linguarudo lambe botas! Já não lhe cabe a língua na boca. Cortem-lha para que se cale!!
Enquanto isto e muito mais se passa, as seguradoras com interesses na saúde, esfregam as mãos! Urgências e exames caríssimos continuarão nas urgências dos hospitais públicos, onde estão os meios e as competências. E os privados terão internamentos de luxo, serviços personalizados!
Para as instituições do SNS, ficarão as responsabilidades, nos hospitais ficarão os miseráveis, que não podem pagar um seguro de saúde. E ficarão por miseráveis salários, médicos dedicados, enfermeiros dedicados, assistentes que aguentam com tudo, por salários ainda mais miseráveis.!
Pergunto-me como é que estas mulheres e homens, a viverem este inferno diário, chegam a casa! Como não enlouquecem? Como não desancam os filhos com porrada? Como conseguem dormir, sabendo que amanhã, no seu longo turno, estarão de regresso ao inferno?!