Causa espécie, como sói dizer-se, encontrar tosca legenda sob um baixo-relevo bem arquitectado. Que mistério ali se ocultará? Poderá a tradição local esclarecer a estranha anomalia?
Encontra-se no cunhal de uma casa, na Rua do Poço, freguesia de Queimada, concelho de Armamar, o que, à primeira vista, aparenta ter sido uma alminha, ou seja, um dos monumentos que a tradição popular foi colocando ao longo dos caminhos, amiúde em encruzilhadas, em louvor das almas do Purgatório – e daí, como se sabe, lhes advém o nome. Aliás, não é incomum estarem, na filactera inferior, as siglas P. N. A. M., no convite a que o transeunte reze um Padre-Nosso e uma Ave-Maria pelas almas.
Aqui, porém, a inscrição nada parece ter a ver com o que lhe está por cima.
Na verdade, o baixo-relevo, em jeito de nicho curvo, de superfície lisa, flanqueado por pilastras e rematado por cornija, com cruz ao centro em peanha e volutas e pináculos piramidais laterais.
Um conjunto, pois, deveras harmonioso e, por isso, ocorre perguntar, com toda a razão, se essa superfície agora nua se não destinaria a receber uma pintura, como outras vezes acontece, alusiva às almas nas brandas chamas do Purgatório. Se a houve, as inclemências do tempo tudo lograram limpar. Não parece haver, porém, o mínimo vestígio de tinta, pelo que, se tal intenção existiu, não chegou a ser concretizada. Também o debrum inferior não tem largura bastante para segurar uma estatueta.
Um dado se nos afigura, todavia, assaz credível: o monumento não foi pensado para esse cunhal, não só porque destoaria da envolvente, mas também porque não é obra para estar àquela altura do solo. Trata-se, pois, em nosso entender, de uma reutilização. Sábia reutilização, dir-se-á, na medida em que, desta sorte, o monumento, qualquer que tenha sido o seu enquadramento original, ficou assim devidamente protegido.
Prende-se essa hipótese com o facto de a inscrição que subjaz ao nicho nada ter a ver directamente com ela. E dizemos «directamente», porque a nossa opinião é que o proprietário da casa terá encontrado o baixo-relevo e o quis aproveitar para alindar essa esquina. E, vai daí, mandou gravar inscrição que perpetuasse a sua atitude:
ESTA OBRA MANDOU FAZER LUIS REUELO DE CAPo · Fº DE IOZE REBE LO DO POSO
O que significa, em linguagem dos nossos dias: «Esta obra mandou fazer Luís Revelo, de Capº[?], filho de José Rebelo, do Poço».
Poder-se-ia pensar que também a placa fosse um reaproveitamento, ou seja, vinda doutro lugar; cremos, todavia, que o facto de José Rebelo ser «do Poço» torna mais verosímil a hipótese de também a casa ter sido obra do Luís!
O tosco bloco mede (aproximadamente) 27 a 31 cm de altura; 64 de largura e 81 de espessura; a altura das letras varia entre os 4,5 e os 5, 5 cm.
Note-se, no letreiro, que Rebelo está grafado com U (por V) e com B – um eco da pronúncia local! Fº é, como se desdobrou, a sigla habitual de ‘filho’. Identifica-se o pai com o nome próprio e o apelido de família e a menção da naturalidade ou da residência: «do Poço», nome da rua onde a sua casa se localiza. Por esse motivo, é natural que «de Capº», na identificação do filho, queira também indicar naturalidade ou residência. Poderá haver dúvida na leitura, porque a superfície está levemente esboroada; Alberto Correia sugeriu-nos CAR(valho), que seria, nesse caso, outro apelido do Luís; quere-nos parecer, todavia, que há um P com um pequeno O sob a parte circular e o ponto triangular que de seguida se vê prova claramente que estamos perante uma abreviatura. De que terra? Inclinamo-nos para que seja uma das proximidades, por se tornar, dessa forma, mais fácil a identificação.
Atente-se, de novo, no carácter rústico da escrita e o facto de não ter havido qualquer cuidado em preparar molduração ou, até, o que seria o mínimo, apresentar o bloco à esquadria, com arestas direitas; nada disso se pensou e também a parede foi toscamente aparelhada com as pedras que se tinham à mão. Mais uma prova a ratificar o carácter de reutilização do nicho ali, desenquadrado mas oportunamente aproveitado.
A que época poderá atribuir-se o conjunto? Torna-se difícil definir. As letras capitais usam-se durante muito tempo assim (veja-se o A com o travessão angular, o S inclinado para diante), e, por outro lado, aqui estamos, inclusive, num meio rural. Uma data de finais do século XIX ou princípios do século XX, não seria, quiçá, despicienda, se atentarmos, por exemplo, na grafia IOZE, com ressonâncias do I latino para o som do J e o Z (mais ajustado ao som usual).
Claro, as fontes locais, como acima se escreveu, designadamente os registos cadastrais, poderão vir em nosso auxílio: quando é que esta casa foi construída (ou remodelada pela última vez)? Quando é que o lugar se chamou simplesmente Poso?
De qualquer modo, regozijamo-nos por nos ter sido possível dar a conhecer um vestígio da antiguidade, que, pelo seu interesse histórico e documental, merece continuar a ser devidamente preservado.
Antigamente, por motivações racionais e/ou emocionais, parecia haver maior cuidado em preservar, reutilizando, materiais e estruturas com beleza e fácil enquadramento em construções posteriores.
Todo o desenvolvimento da história deste belo baixo-relevo, embora gerando uma considerável quantidade de perguntas, se converte numa viagem emocionante ao passado.
Adorei ler este texto.
Gustavo Monteiro de Almeida, Licenciado em Direito, Jurista de profissão; investigador de história local, das instituições e da família, tendo sido colaborador externo da extinta Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, promovendo o inventário inicial do património edificado do concelho de Tabuaço na base de dados SIPA – Sistema de Informação para o Património Arquitectónico, acessível em http://www.monumentos.gov.pt.), leu o nosso artigo e confirma que é Luís Rebelo de Carvalho, filho de José Rebelo, do Poço (de acordo com os assentos paroquiais – último quartel do séc. XVIII).
Observações de Monteiro de Almeida:
*1 – As alminhas terão sido reutilizadas; muito possivelmente, este monumento não foi pensado para esse cunhal, não só porque destoa da envolvente, mas também porque não é obra para estar àquela altura do solo.
*2 – Diretamente não terá nada a ver com as alminhas. O carácter rústico da escrita, o facto de não ter havido qualquer cuidado em preparar molduração, apresentar o bloco à esquadria, com arestas direitas e a parede toscamente aparelhada confirmam uma provável reutilização do nicho.
*3 – José Rebelo do Poço aparece mencionado em inúmeros assentos de batismos e casamentos de seus filhos, nos registos paroquiais de Queimada, na segunda metade do séc. XVIII. Aparece mencionado como “José Rebelo do Poço” no assento de casamento de seu filho José Rebelo, com Joana Rosa, ocorrido em 24.11.1781 (ADVIS, Liv. 1 de Casamentos, 1777-1859, f. 4 ). José Rebelo, do Poço, era casado com Luísa de Carvalho, significando com isso que o apelido Carvalho passou a seu filho, Luís Rebelo de Carvalho, conforme grafado, de forma abreviada, na lápide. Este, por seu turno, foi casado com Maria Ferreira, também de Queimada, em matrimónio ocorrido na freguesia em 08.11.1777 (ADVIS, Liv. 1 de Casamentos, 1777-1859, f. 2). E aparece mesmo identificado como Luís Rebelo de Carvalho, no batismo de seu filho José em 28.11.1778 (ADVIS, Liv. 1 de Batismos, 1776-1820, fl. 7v )