QUE IDADE TEM?

As boinas, os sorrisos, a desenvoltura. Todo o conjunto pedia olhos. Mas por que havia um casal de idosos de remeter-me para um filme de espionagem do século passado?

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Imagem Freepik

A bica arrefecia, o ânimo não. Havia ali alguma coisa que era preciso descobrir.
Ele metia a mão no bolso por um instante. Quando a retirava vinha de punho fechado, direito à mão dela estendida. Só podia ter havido alguma combinação prévia.
Eu apontava no guardanapo uma frase curta, sinais que mais tarde não saberia descodificar, mas tinha medo de perder alguma coisa importante.

Ele era esguio, andaria pelos oitenta. Não conseguia tirar os olhos dela ligeiramente mais
nova. Seria?… O rosto parecia bonito, emoldurado por cabelos brancos sob uma boina escarlate, mas não lhe conseguia avistar senão o contorno da hemiface esquerda, apoiada
na mão sobre o ombro descaído.
Resolvia prescindir das garatujas. Era melhor abrir os olhos.

Riam muito… riam alto, daqueles risos vazios de conteúdo, palermas, como miúdos a partilharem uma traquinice, ou a provocar. Devia ser a provocar, digo eu agora…
Uns minutos de silêncio, bebericando o café…ele a meter o biscoito na boquinha dela quase a simular um beijo. Depois ela guardava na mala “aquilo” que ele lhe dera, ainda escondido na concha da mão pequena.

Da brancura transparente da pele de ambos, emergiam veias de um azul desmaiado. A idade?…Não deviam ser grandes amigos de sol, isso sim, de passeios ao ar livre, mas não lhes faltava ousadia.
Olhavam-se com enlevo. Eu fazia por disfarçar, mas só me faltava roer as unhas para não lhes perguntar o segredo. Estava dentro do filme e não sabia o meu papel. Mudo era, só com ais e uis de “que raiva”….

OIhavam-se de novo, um olhar que condensava todas as cenas de antologia do cinema, contagiados pelo mesmo sorriso cúmplice.
De repente o impensável: os pescoços cresciam sobre o plano da mesa e trocavam aquele beijo que me fazia corar.
Pois não, não era como o beijo dos idosos (mas o que será idoso?) rápido, constrangido…era longo, ardente, cúpido.
Ia segurar outra vez o guardanapo entre o polegar e o indicador, mas desistia. A cena do beijo é sempre a melhor do filme.
Dois minutos depois, talvez nem tanto, levantavam-se colados um ao outro e saíam.

Nessa altura eu não aguentava mais. Deixava o dinheiro na mesa, empurrava a cadeira com ruído e corria atrás deles, com receio de os perder.
Não haveria esse perigo. Como se o mundo lhes pertencesse por inteiro e ninguém mais existisse, ela deitava a cabeça no ombro do seu amado e avançava em passos levezinhos como pilrito na praia.
Os dele eram mais arrastados, mas para que existem dois e tomam o nome de par?…

Voltava ao café dias depois, vazio como quase sempre. Devorada uma empada de galinha e meia de leite, nervosa, quando eles apareciam. As boinas, os sorrisos, a desenvoltura.
Bonitos, agora viam-se bem.
Parava de comer, olhava sem constrangimentos. O guião era pouco variado, só o aroma de mistério persistia na troca de encantamento, pelos termináveis nervosos das mãos sempre enlaçadas.
A cabeça não me deixava descansar. Quando se levantavam para sair, esperava só que
transpusessem a porta. Depois chamava o empregado com o indicador no ar e o dinheiro
na mão esquerda…
“Por acaso conhece o casal que acaba de sair?”
Sorria, alisando o avental preto. “Claro, até sei o nome dos pombinhos. São namorados, sim… Escaparam ambos à COVID e agora não se largam. Admira-se? Há dias ele ofereceu-lhe o anel de noivado…”
O anel…o que passava de mão para mão, era o anel…
“Quem lhe contou o segredo?”
“Ele mesmo…vão casar para o mês que vem, numa moradia perdida na serra de Sintra. A melhor coisa que aprenderam”
“Qual coisa ?”
Olhou-me como se eu fosse atrasada mental e demorou uns segundos:
“Aprenderam a não desperdiçar um momento, nem sequer com a curiosidade alheia…”
Aquela era muito forte. Metia a viola no saco, pagava a conta habitual e estava pronta a desandar.

Há quem aprenda alguma coisa com os percalços da vida, apesar da idade…
O empregado tinha o poder de revirar o meu cérebro e respondia, já eu estava a chegar à
porta, como se adivinhasse as perguntas que eu me fazia em silêncio.
“Quando soube do casamento, tive a ousadia de lhes lembrar a idade”
“E eles?”
“Ela sorriu, delegou nele a resposta”
“Que foi…”
“Há codificações para tudo, à medida do desejo alheio. De fora vêem-nos como velhotes, nós sentimo-nos adolescentes”…
Na rua não vi ninguém e tanta gente passava. Só avistava imagens futuras de um casal de idosos a prepararem o casamento no romantismo de Sintra.
Seria Poeta, ele?
E afinal, o que é idoso?

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