I
“A humanidade tem degenerado. O mundo retrocede a passos largos até à conduta das feras”. Alguém o dizia há dias, um abstémio empedernido, na reunião informal que dominava como “digestivo” do almoço. Era a sua forma de revirar o mote da hipocrisia dos votos de Bom Natal, face à violência dos tempos.
De algum modo teria razão. A agressividade dos conflitos, com palcos por todo o mundo, não respeita convenções, nem a dignidade humana, nem tréguas nas hostilidades mais sangrentas. Mas talvez seja abusivo, ou pelo menos injusto, meter no mesmo saco todos os seres humanos à face da Terra.
Se alguns indivíduos em teatro de guerra se comportam como feras, são levados a fazê-lo por lideranças corruptas, políticas e económicas, que se amparam umas às outras sempre escondidas na sombra. Para elas é preferível perderem-se vidas, a dispensarem os lucros escandalosos, obtidos com os monopólios em indústrias de armamento, por exemplo.
Sem ética só pode haver uma completa subversão de valores. E em vez de respeitarem princípios fundamentais, como os da Carta das Nações Unidas, que invocam erros antigos para se evitarem outros semelhantes, fomentam e ampliam esses erros, criando focos de instabilidade por conveniência própria.
A Europa tem sido palco de guerras medonhas e ainda não se encontrou a si mesma, nem à fórmula correcta, para banir líderes perigosos e salvaguardar vidas úteis. Um mal que atinge os outros continentes. A integridade física e psíquica de populações indefesas, continua ameaçada por “meia dúzia” de loucos ambiciosos.
II
O meu primo Plínio Ventura, que eu não podia ter conhecido, era mobilizado em 1917 para a Iª. Guerra Mundial. Integrando o Corpo Expedicionário Português (CEP) pelo lado dos Aliados, fazia parte do batalhão de infantaria de Coimbra, o 23, mas por doença súbita regressava poucos meses depois de partir.
Outros teriam menor sorte…A batalha de La Lys, a 9 de Abril de 1918, seria um desastre para os portugueses. Exaustos, à espera de serem rendidos pelos ingleses nesse mesmo dia, não aguentavam o cerco dos alemães e sofriam cerca de sete mil baixas…
Sidónio Pais, num período confuso da política portuguesa, ainda considerava mandar mais 15 mil homens para substituir mortos, estropiados, ou feitos prisioneiros. Um modo de ficar bem visto perante os Aliados, apesar de contestado. O Armístício de Compiègne, a 11 de Novembro desse mesmo ano, salvava os indigitados de serem transformados em carne para canhão. O próprio Sidónio seria assassinado um mês depois, e a saga das decisões contraditórias havia de continuar…
Dos homens mobilizados, quero acreditar que nenhum partisse com vontade de ferir, de torturar, de matar, a não ser em legítima defesa. E todos, alguns com educação esmerada e já com sólida formação académica, teriam um respeitável código de valores.
É o que sugere a carta de um amigo de Plínio, preparado para embarcar a qualquer momento, mas ainda sentimentalmente activo e a transpirar correcção na frontalidade. Encontrei o documento por acaso, no escasso espólio de família. A destinatária era uma das irmãs do meu primo, que só viria a saber de tudo mais tarde, quando recuperava da doença.
III
“ Minha Senhora
Fui na sexta-feira absolutamente ridículo.
Aquela carta que lhe mandei entregar pelo meu criado, subscritada para um nome que na vizinhança colhi como sendo seu, dá-me um ar de ingenuidade tola, muito próprio para “Dons Juans” de 14 anos, mas que eu absolutamente detesto.
Peço-lhe que esqueça isso tudo, e agora, que tenho a certeza de me dirigir a si novamente, venho perguntar se quer ser minha madrinha de guerra.
Creio bem que não era uma carta neste teor que esperava, mas a verdade é que essa frase tão batida do “ver-te e amar-te”, é uma mentira grosseira que eu sou incapaz de dizer.
Vi-a pela primeira vez na sexta-feira, e o amor não nasceu como um tortulho por geração espontânea. Achei-a interessante, segui-a, e o interesse aumentou. Hoje a senhora já é alguma coisa na minha vida, que o amanhã pode preencher completamente.
Preciso de a conhecer, de a ver muitas vezes, de lhe escrever, de lhe falar, para não mentir quando lhe disser que a amo. Seja a madrinha carinhosa do mau afilhado que lhe beija as mãos.
J. C. i A. Coimbra-14-7-1918 – Hotel Central”
Gostei da crónica, pelo estilo, pela qualidade da escrita a que, aliás, a autora já nos habituou, e, naturalmente, pelo conteúdo.
A carta do D. Juan precipitado – ‘Vi-a pela primeira vez na sexta-feira, achei-a interessante…’ – é uma delícia. Após reflexão durante o fim-de-semana, o rapaz arrependeu-se (afinal a jovem não era assim tão interessante) e, sem coragem para voltar completamente atrás, despromoveu a irmã de Plínio, de futura namorada ou noiva, para madrinha de guerra (mesmo assim, carinhosa), a quem, não obstante, e como prémio de consolação, não deixa de beijar as mãos. E, como provavelmente já tinha lido Pessoa, confessou-se ‘absolutamente ridículo’.
Pois… cartas de amor… assunto temerário que nos faz tremer só de pensar que alguma sobreviva por aí nalguma gaveta. Se por um lado enobrece quem a escreveu e merece ser brilho de medalha ao peito, por outro, é coisa de andar escondida e abotoada debaixo do pano, não vá ver-se de fora. Mas, afinal de contas, o que faz correr tanta tinta, não é aquela coisa maravilhosamente torturante, aquele quid magnético que atrai o pirilampo à pirilampa no escuro incomensurável ? Quantos Caminhos e Camões e escrivães de meia água não forraram já paredes de salas e bibliotecas por esse mundo fora só de loas à cachopa amada ? Ora só por esse contributo para a estabilidade térmica dos edifícios já mereciam maior respeito. Da Lisboa dos anos 40 sobreviveu lá em casa, entre fotos, recibos de 620 escudos da renda da casa, talões da Singer comprada a prestações, cartas da tia do Brasil, e milhenta papelada, uma carta de amor de um marujo endereçada a minha mãe. Em letrinha miúda e prosa educada lá desfiava os motivos do seu encantamento, era quase cada palavra cada erro mas que não descontavam em nada na nobreza da epístola. Muito menos nobre fui eu que aproveitei a íntegra do texto , (erros e tudo) para, em laia de brincadeira, enviar uma cópia a uma moçoila por quem andava embeiçado na altura.. pois… cartas de amor…. com a brincadeira fui parar ao Sameiro vestidinho de preto e vim de lá com anilha no dedo.
Crónica deliciosa pela ingenuidade deste Don Juan, amigo do primo Plínio e reflexão muito actual sobre as guerras que ao longo dos tempos fazem tremer o velho continente e suas motivações.
Minha Senhora, neste caso Maria Helena Ventura, fiquei absolutamente rendida a este seu texto quer pela qualidade da escrita, quer pelo conteúdo.
Decididamente é um privilégio ter oportunidade de a ler. Esta Quase Carta de Amor é digna de uma grande escritora.