MORTOS

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O contraponto com o iogurte natural não funcionou como pensei. Ainda mais enganei-me, comprei o leite cozido que não tem metade do sabor ou graça. Mas ajudou a serenar a barriga e a cabeça. Precisava urgentemente de leite condensado para lançar uma bomba calórica bem no centro da nulidade. Acabei a taça, escolhi um filme com o actor que durante muito tempo achei que não passava de uma carinha laroca até ver o Kalifornia. Carreguei no play.

Casablanca, II Guerra Mundial, vestidos de cetim e carros que hoje parecem de brincar, Londres, o som das sirenes dos bombardeamentos, um grande amor.

O barulho das conversas lá fora quedou-se se num burburinho quase inaudível. O silêncio pesado na casa deu lugar a uma brisa ligeira, suave. Não está calor nem frio.

Deitada, na perna direita dobrada o portátil, na esquerda, escondido, um peso familiar. Desviei o Mac e dei de caras com aquele focinho, aqueles olhos azuis gritantes vidrados em mim. Paz. Alcancei a paz depois de muitos dias de “o que é que me vai acontecer hoje?”, o pensamento a mil, o sono a fugir por muito que o tentasse agarrar, a inquietação intermitente, os ataques de pânico. Um deles levou-me a voz por eternos minutos, mas bem sei porquê, bem sei do que fujo. Mas tudo isto ficou à beira da cama, há muito que me encontrava em Londres a seguir o amor deles com morte anunciada. E ela chega, num ambiente cinematográfico bonito, tão bonito, tão simples. A morte chega pela mão do argumentista que a escreve singela, tão bela, sofrível, a perpetuação do amor. O amor não morre no suicídio da protagonista. O amor nunca morre.

Cai o genérico, caem-me as primeiras lágrimas, as do filme. Fecho o portátil e continuo deitada de barriga para cima. Choro os beijos que me faltaram, os abraços que não senti, as festas no cabelo capazes de me abraçarem por inteiro. Choro a minha solidão durante este turbilhão de coisas menos boas, más péssimas. Choro por muito mais.

Roço com as pernas as pregas das calças de ganga, há quase uma semana que não visto mais nada, é cetim para mim. Enfio os pés nus na colcha castanha, sinto a textura e aí sim, choro os meus mortos. Não me abraço às almofadas nem me ponho em posição fetal. Não, entrego o meu corpo ao choro, sinto-o bocadinho a bocadinho, até me atingir por inteiro. Paro, recomeço, uma e outra vez. Fico tranquila, venci a velocidade do pensamento, o pânico de ataques permanentes, a solidão. Não escondi nenhuma dor enterrada dentro de mim. O gato saiu da cama, penso que as minhas lágrimas o assustaram. A mim não.

Era suposto tomar um duche mas, tal como o sal do mar que se gruda no corpo depois da praia, não quero lavar as lágrimas que se entranharam na pele. Não quero aquecer a sopa, não quero organizar as pastas para amanhã. Hei-de fazer isso tudo. Por agora só quero outro filme com o actor que já levo a sério, não obstante a carinha laroca.

Aqui o décor é de um cinzento eléctrico, é a noite que desliza sobre linhas, o barulho que vem do restaurante por debaixo da janela, o amarelo torrado dos candeeiros que velam sempre por mim.

Amanhã vai estar tudo onde deixei, excepto talvez os ataques de pânico que levaram uma banhada com as lágrimas, mas sei que o reboliço vai acordar-me bem cedo. É quase certo. Amanhã.

Hoje entrego-me ao cinema que empurrou a tristeza e me deixou ali na cama, a roçar as pregas das calças de ganga e enfiar os pés nus na colcha castanha. Hoje choro os meus mortos e tudo em mim é vida.

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