Um romance de bisturi afiado

Por mais que disfarce, o escritor de ficção encarrega as suas personagens de veicularem as ideias que professa. Ou as dúvidas que o assaltam. Os as esperanças que acalenta.

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Setembro Vermelho, de Cândido Ferreira(Edições MinervaCoimbra, Junho de 2012) apresenta-se como «romance». Afirma o autor, numa ‘explicação necessária’, que se trata de «uma ficção que não pretende traduzir, com rigor absoluto, os factos ocorridos e a sua sequência». Acrescenta: «Procurando não desvirtuar a realidade que viveu, o autor recorreu a criações para contar uma história e não para acertar contas com a História».

Tudo gira, na verdade, em torno da biografia do protagonista, Ulisses de Castro, contada na primeira pessoa; e se a palavra romance se assume como o desenrolar de peripécias amorosas, Setembro Vermelho merece a classificação, porque a narrativa se desenvolve, desde o início, a partir de ou tendo como aliciante condimento os ‘romances’ de Ulisses.

Quem, no entanto, conhece o currículo do autor, depressa compreenderá que, mais do que os enredos amorosos, lhe importou dar a sua versão dos acontecimentos que abalaram a Academia Coimbrã em 1969. Aliás, o protagonista viveu em Paris o Maio de 68, confessa-se acérrimo militante do PCP e é deste prisma que o relato é minuciosamente feito, retrato acabado da vida estudantil coimbrã e das suas repúblicas.

¿Romance «histórico», então, para miudamente contar as peripécias por que passou a juventude portuguesa nesses anos de exacerbada guerra colonial – as lutas académicas, a ida da ‘malta’ para a recruta em Mafra, a incorporação compulsiva, o ‘clima’ em Angola… – e, inclusive, o que se seguiu ao 25 de Abril até ao 28 de Setembro de 75?  Sim, desse prisma, mau grado a ‘explicação necessária’, romance histórico será.

Há, porém, um 3º aspecto, quiçá aquele em que o autor mais se deleita: a mui erudita discussão ideológica. Amiúde as personagens se envolvem em acesa troca de ideias, na defesa das causas subjacentes à sua actuação política e religiosa. Tudo é passado a pente fino, dir-se-ia…

Nesse âmbito, não é nada despiciendo o facto de o protagonista (o autor, entenda-se agora…), afirmando-se já aposentado, não ter resistido a contar, em epílogo, o rumo que cada um dos personagens seguiu até ao momento da edição do livro. E se já antes, aqui e acolá, as farpas se não pouparam, é nesse relato individual que a ironia assume papel preponderante, na medida em que cada «figurante» personifica percursos, amiúde inesperados, que ‘revolucionários’, pides e outros lograram milagrosamente engendrar…

imagem da contracapa

Muito bem escrito, sem gralhas (a louvar!), num português escorreito e de mui fácil leitura, ajustado a cada ambiente social, brinda-nos, de vez em quando, com sentenças lapidares, que não resisto a transcrever:

«Nunca será pela matraca que se quebra a alavanca das ideias» (p. 92).

«O sonhar acordado é a lanterna que ilumina as noites mais escuras» (p. 95).

«Até no campo mais daninho podem, a qualquer momento, brotar flores» (p. 106).

«Larga é a estrada que leva à desilusão, e estreito o caminho de regresso» (p. 107).

«Só se descobre que alguém sabe pouco quando fala muito» (p. 123).

«O povinho prefere um ditador que não lhe aumente as décimas a um libertador que o obrigue a dar corda ao relógio» (p. 124).

«O homem sábio aprende mais com os falhanços dos outros do que com os seus» (p. 162).

«A diversidade é o mel da humanidade» (p. 188).

«Quem não tem inimigos também não é digno de ter amigos…» (p. 188).

«A calúnia pode ferir-nos mais do que as balas» (p. 189).

«Os rouxinóis não cantam por serem estouvados, mas porque nascem poetas e trazem o coração cheio de melodias» (p. 234).

Apesar de confessar, no final (p. 285). que se decidiu a escrever este livro «na convicção de que as novas gerações saberão impor-se à pilhagem institucionalizada», o certo é que nele está, de facto, pintado em paleta de negras cores o quadro deste Portugal no dealbar do século XXI.

Todo o edifício continua a correr mui sério risco de ruir, mercê – atrevo-me eu a assinalar – da pertinaz existência daquela erva daninha para que já o perspicaz Luís de Camões quisera chamar a atenção, qual testamento, ao escolhê-la para ser a última palavra d’Os Lusíadas: a inveja!

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