Estou a escrever este texto na óptica de uma cidadã que nem sequer vota PS e que, quando trabalhava em redacções de jornais, só integrou a secção de Política durante seis meses.
Lembro-me de um velho amigo dos meus pais que, desde tempos anteriores ao 25 de Abril, se referia a ‘eles’ sempre que queria responsabilizar alguém por alguma coisa: ‘eles disseram que ia chover’, ‘eles não nos dizem o que se passa’, ‘eles fizeram uma Revolução’, e assim sucessivamente. Um dia perguntei quem eram ‘eles’. Olhou-me com ar de espanto e respondeu: ‘O quê? Não sabes? Eles são eles…’
Sinto-me como nos meus 12 anos, quando ouvi aquela resposta. Só que hoje consigo perceber mais do que naquela altura e pergunto-me se tantas pessoas ainda se mantêm nos 12 anos. Quer isto dizer: até à semana passada, por causa de Orçamento de Estado para a frente e para trás e de eleições antecipadas, finalmente o OE foi promulgado. Significa isto que até Junho – durante seis meses – vivemos de duodécimos. Nós vivemos de duodécimos. O Estado viveu de duodécimos. Nós somos o Estado, porque sem os nossos impostos não havia Estado!
Aparecem alguns iluminados a pedir a demissão da ministra da Saúde porque não paga mais aos médicos, a estes e àqueles. Não gosto nem desgosto da senhora. Não a conheço, mas reconheço que nos piores momentos da pandemia eu não gostaria de ter estado no seu lugar.
Na linha de que o Estado somos todos nós, a título de exemplo, recordo o que se passa com o fim das taxas moderadoras. Sou contra! Havia pessoas que estavam isentas por terem menos rendimentos e as com mais posses pagavam quantias que nem sequer eram elevadas. Querem que se pague mais aos médicos e que, por outro lado, seja tudo gratuito? Não podemos todos contribuir com pouco que seja?
Soube-se agora que há muitas vagas por preencher nos hospitais públicos porque os ordenados são baixos. Seria bom apurar quem são os médicos que, tendo exclusividade, fazem serviço para os privados ou em consultórios particulares. Têm necessidade? De quanto precisam para viver com dignidade, tendo em conta o investimento profissional que fizeram e o trabalho que desenvolvem, não esquecendo o custo que representaram para o Estado? E, já agora, que tipo de formação se dá aos mais jovens que tratam desabridamente os doentes, mesmo que eles sejam médicos mais velhos ou antigos colegas.
Recentemente, do alto dos seus 35 anos, um médico da urgência perguntou-me se eu não sabia que ‘o tempo do João Semana já acabou’. Limitei-me a dizer que a sua resposta era muito, muito triste.
Portugal não é um País assim tão grande e cada região tem um hospital. Na maioria dos casos, se um está sobrelotado, não será difícil recorrer a outro.
Falar em ‘caos’, ‘escândalos’ e ‘crises’ só interessa mesmo a uma certa comunicação social. Claro que há casos a lamentar. Mas esses não são, felizmente, a maioria e, por muito que nos queixemos do Serviço Nacional de Saúde, a verdade é que melhor ou pior nos serve a todos.
Atrevo-me ainda a acrescentar que as momices do Presidente da República e a sua capacidade de manipulação só ajudam a todo este estado das coisas. Afinal, quando o mais alto representante do Estado faz a figurinha de beijar a barriga de uma grávida está a querer dizer o quê, quando uns dias antes houve uma morte de uma criança, aparentemente por falta de um obstetra num hospital?
Há dois dias uma criança foi brutalmente assassinada em Setúbal. De súbito, toda a Comunicação Social se lembrou das Comissões de Protecção de Menores, o que sucede sempre que há uma tragédia desta natureza. As CCPJ, como é sabido, não têm mãos a medir para acorrer a todas as necessidades, além de que precisam do acordo dos pais para intervir, caso contrário o processo transita para o Ministério Público como, de resto, aconteceu nesta situação em concreto.
Mas o que é revoltante é ouvir os vizinhos e familiares dizerem que a criança era maltratada e queixarem-se da mãe. Então não comunicaram a situação às autoridades competentes? Demitiram-se das suas obrigações de cidadãos e de familiares? Em minha opinião, são todos cúmplices deste crime que vitimou uma menina de três anos.
Reitero: o Estado somos nós e se este tem obrigações, nós também temos responsabilidades, seja ao seu serviço, seja na denúncia dos crimes públicos que presenciamos e atingem os mais fracos e vulneráveis.