A MALDIÇÃO

APONTAMENTO SOBRE A RÚSSIA

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Já houve quem sustentasse que a Rússia era uma espécie de país do Terceiro Mundo, mas provida de mísseis e de meios bélicos atómicos arrasadores. Só devido a isso pode fingir ser uma grande potência. Basta pensarmos que o seu produto interno bruto se situará ao nível de uma Itália, que não poderemos apresentar como um colosso.

A sua imponente dimensão territorial nunca correspondeu a uma realidade nacional homogénea. A Rússia é um mosaico de povos que se não estimam mutuamente e de crenças que coexistem em estado de tensão. Isto explica, em larga medida, que a unidade interna nunca tenha conseguido prescindir de um “poder cossaco”, de uma embriaguez de violência, de um autoritarismo congénito e de uma administração centralizada, servida por meios coactivos de natureza brutal. Se assim não tivesse sido, a Rússia já se teria dilacerado numa multiplicidade de independências e de autonomias.

A tentativa actual do putinismo de fazer regressar esse país à matriz imperial dos czarismos passados – o branco e o vermelho – mais não é do que o empenho de somar novas contradições a uma realidade de base que sempre foi contraditória.

A Autoridade, na sua forma mais conservadora e irretorquível, é o grande cimento agregador da alma russa. Ela é indiscutível a um tal ponto que se torna impossível falar de cidadania nos mesmos termos em que dela se fala no Ocidente democrático. O “cidadão” russo “cuida da vida” e espera que as diversas chefias instaladas cuidem do destino da colectividade. O contraditório das diversas decisões políticas não é visto, como entre nós, através do prisma da legitimidade assente na soberania da população, mas através da óptica na inelutabilidade da obediência devida a quem manda.

A tradição político-cultural da Ocidentalidade é inaplicável à Rússia. A razão mais forte desta inaplicabilidade assenta numa evolução histórica e social que sempre se fez ao arrepio do que designamos por Europa.

Nesta Europa a que nos reportamos, foram os servos da gleba medieval que se libertaram das cadeias da sujeição aos aristocratas e que se constituíram como burguesia. Esses servos tornaram-se prestimosos, promoveram-se socialmente, fizeram estudar os seus filhos em Universidades e acabaram por oferecer aos reis absolutos alguns dos seus principais conselheiros e ministros.

Na Europa constituiu-se, portanto, uma camada intermédia que pôde amortecer o conflito, sempre latente entre os que mandavam e os que obedeciam. Os caminhos de constituição da burguesia russa nada têm a ver com os que acabamos de expor. Os servos da gleba na Rússia foram os mujiques. Estes nunca conseguiram ser outra coisa senão miseráveis. Mesmo os proprietários com umas leiras de terra individualmente apropriada não puderam gerar uma burguesia. Estes “kulaks” foram mantidos sempre sob suspeita, quer pela aristocracia dos czares coroados – antes de 1917 – quer pela nova aristocracia dos czares burocráticos – depois de 1917.

Por estas razões, a Rússia nunca possuiu uma camada social que, firmada na sua força individualista e na sua autonomia de decisão, pudesse protagonizar a História. Por isso, a Rússia desconheceu inteiramente a realidade de um capitalismo burguês audacioso e empreendedor. Por este facto, a Rússia também desconheceu algo de comparável à revolução francesa de 1789, a partir da qual se organizou a revolução industrial.

Apesar disto, a Rússia sempre sentiu um fascínio imenso pelo mundo ocidental. O caso de Catarina, a Grande, é emblemático. A poderosíssima oligarca protegeu e estimulou o movimento iluminista e enciclopedista. Protegeu o mais que pôde Diderot, supriu-lhe todas as dificuldades económicas, instituiu-lhe uma tença e subsidiou-lhe a compra de livros para a biblioteca diderotiana. Quando morreu Diderot, essa biblioteca seguiu para S. Petersburgo. Algo de grosseiramente semelhante ocorre no presente, quando na Rússia de agora se fazem ouvir vozes oligárquicas a preconizar a formação de uma espécie de Eurásia, que ampliasse e unificasse, sob a égide da Rússia, os dois continentes contraditórios.

No plano cultural, a Rússia é de uma grandeza inequívoca, nada ficando a dever ao que de melhor se criou no mundo. Mas esta grandeza é quase toda proveniente dos séculos que antecederam 1917. Reportando-nos apenas ao domínio que melhor conhecemos, o domínio literário, diremos que o melhor da literatura russa se assume sob a forma do trágico, do culposo, do incómodo, do drama existencial. A grandeza incomparável da literatura russa advém do facto de se tratar de um produto macerado, quase de natureza autopunitiva.

Tolstoi foi um aristocrata de infeliz consciência. Sofreu na carne o drama de ser um terratenente de alma cândida. Dostoievsky é em toda a sua obra uma espécie de psicanálise da culpa em carne viva. Gogol exprime um riso triste, cuja desesperança se supera através de abordagens de significado grotesco. Anton Tchekov explicita nas suas peças um psicologismo subtilíssimo, compondo magistralmente uma galeria de personagens inseridas em famílias decadentes, nas quais se plasma um irrefragável mas difuso sentimento de perda (v. g. as peças “A Gaivota” , “O Cerejal” , “O Tio Vânia”). Mikhail Bulgakov reedita, em moldes mais modernistas, o grotesco de Gogol, refugiando-se num mundo onírico, todo ele percorrido por pulsões satânicas (“O Mestre e Margarida”, obra admirável) ou por paralelismos entre a condição da transcendência humana e as imposições da mais pura e dura condição animal (“Coração de Cão”, por exemplo).

Ou seja: a cultura literária russa expressa a nostalgia do que é sentido como insuficiente e dubitativo, como trágico no sentido etimológico. Do “realismo socialista” que irrompeu da revolução bolchevique, é melhor nada dizer, por piedade . É, em nosso entender, mesmo no que se refere a todas as obras de protesto político e social (Pasternak, Soljenítsin) um infinito bocejo tedioso …

Se colocarmos a nós próprios a pergunta “A Rússia, que futuro?” a única resposta que nos parece razoável dar é esta: a Rússia irá ter o futuro que o passado lhe preparou. É um país condenado às formas de servidão cívica provenientes de um passado histórico imemorial. A Rússia será Rússia enquanto estiver agrilhoada. É essa a sua alma e a sua condição endógena. Quando cortar as grilhetas, melhor, se um dia vier a cortar as grilhetas, desaparecerá para sempre como Rússia. Porque terá alienado a sua alma, que é simultaneamente a sua maldição.

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