Um depoimento sobre o acidente de Camarate, por Victor Brito

Uma explicação prévia: Victor João Lopes de Brito, coronel piloto aviador, já na reforma (nasceu, em S. Brás de Alportel, há mais de 90 anos!), foi piloto de linha aérea, piloto instrutor e Piloto Examinador Sénior), fundador e responsável da EAA – Escola de Aviação Aerocondor (cuja primeira sede foi no aeródromo de Tires), cofundador da AAE – Aeronatical Academy of Europe. Escreveu-se num dos seus ‘currículos’: «Ficará na História como um dos maiores vultos da Aeronáutica Portuguesa, responsável por ter criado empresas inovadoras e ter colaborado no desenvolvimento do Aeródromo de Tires. Licenciado em Ciências Aeronáuticas pela Academia Militar (1955), participou em diversas missões em diferentes cenários e, ao longo da sua longa carreira de 68 anos a voar, realizou mais de 20 mil horas de voo em dezenas de aviões e helicópteros. Passou à situação de reserva da Força Aérea em 1977». Enviou-nos este seu depoimento, escrito em Abril de 2018, que, dado seu interesse técnico, nos dispomos a publicar, em três partes, dada a sua extensão. Ficamos-lhe gratos pela deferência.

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1 – INTRODUÇÃO

O acidente de Camarate tem vindo a ser utilizado para alimentar jogos políticos e a maioria dos portugueses está convencida de que a morte do Primeiro-Ministro Sá Carneiro e da sua comitiva se ficou a dever a um atentado. Também os deputados da Assembleia da República, embora não todos, depois de se terem nomeado, até à data, 10 comissões parlamentares continuam a defender esta tese.

Entretanto, eu próprio, que comecei a ministrar os primeiros cursos de piloto de multimotores, em Portugal e todos os pilotos profissionais que conheço, técnicos aeronáuticos, investigadores de acidentes, sabemos, desde o princípio, que, para este avião se ter despenhado, não precisava de ter sido sabotado, ou envenenados os seus pilotos, dadas as condições totalmente opostas às regras de segurança de voo em que o voo foi efectuado.

Não pretendo fazer nenhum juízo sobre se houve crime ou não. Vou falar apenas sobre aspectos de carácter técnico aeronáutico e de performance ou desempenho de aviões do tipo do Cessna 421, Golden Eagle em que o acidente ocorreu.

Já foram lançados vários livros e filmes sobre Camarate, gastaram-se muitos milhões de euros e já se desperdiçou demasiado tempo a alimentar a curiosidade mórbida do povo português com um tema que a todos afectou mas que, por isso mesmo, merecia ser tratado com independência e desligado de paixões políticas. Esta posição não contribui para o prestígio do Parlamento Português. Apenas o último livro com o título “Grande Embuste”, que só agora tive oportunidade de ler, constitui uma investigação isenta que vale a pena conhecer. O autor, o jornalista José Manual Barata-Feio, teve o trabalho e a coragem de pôr a descoberto a enorme quantidade de incongruências e de disparates que, ao longo de 38 anos, foram ditos e escritos sobre este voo.

Lamenta-se que nenhum dos livros tenha sido escrito por pilotos ou engenheiros aeronáuticos. Então por que não fui eu próprio a fazer este livro? É uma boa pergunta; mas, se ma tivessem feito, eu diria que, de facto, tive a ver com a primeira investigação e a única que foi conduzida no próprio local onde o avião se despenhou e antes de os destroços terem sido removidos.

Eu explico:

Em 1980, era administrador de uma empresa sediada no Aeródromo de Cascais, a AEROAVIA, Sociedade Aeronáutica SARL, para a qual tinha obtido a representação da marca CESSNA em Portugal. O Subdiretor Geral da DGAC  (Direcção Geral de Aviação Civil), Coronel Engenheiro Aeronáutico Morgado, telefonou-me no dia a seguir ao acidente a pedir para a CESSNA enviar um técnico da fábrica fazer um exame aos destroços do avião. Falei imediatamente com Bruxelas, sede da CESSNA na Europa, e, prontamente, foi enviado o piloto e mecânico holandês John Diheric que eu já conhecia e que passou dois dias a examinar e a tirar fotografias ao avião acidentado no local onde caiu. Antes de regressar a Bruxelas, teve uma reunião comigo e contou-me tudo o que viu e que eu já suspeitava que tivesse acontecido.

Em resumo:

– Paragem do motor esquerdo à descolagem por falta de combustível.

– As pás do hélice não estavam em bandeira e, por esse motivo, o avião caiu poucos segundos à frente.

– Confirmou no terreno que a manete da bandeira estava à frente, em vez de estar atrás.

– A asa esquerda não tinha combustível e a direita estava quase cheia.

– O hélice do motor esquerdo tinha tocado no solo com pouca velocidade e sem potência, em “moinho de vento”. O hélice do outro motor entrou no solo a rodar e com tração, como demonstravam as pontas das pás dobradas para a frente.

– Não conseguiu descobrir qualquer vestígio de explosão provocada por sabotagem.

Fui, por esta via, das primeiras pessoas a saber o que tinha realmente acontecido e nunca pensei que viessem a transformar esta desagradável ocorrência num instrumento político ao ponto de, passados quase 38 anos, ainda se estar a gastar tempo e dinheiro público, tentando demonstrar que não houve acidente nenhum, o que houve foi sabotagem, foi um crime e não um acidente.

Quando me apercebi que se pretendia aproveitar esta ocorrência para fins políticos, não escrevi um livro, mas fiz um artigo, no qual tentei demonstrar que não seria preciso sabotar o aparelho para que este se tivesse despenhado e que, nas condições em que o voo foi executado, o acidente era INEVITÁVEL. Este artigo foi publicado pelo EXPRESSO e por várias revistas da especialidade. Até hoje, não recebi qualquer desmentido ou expressão de desacordo.

2 – CESSNA 421 A, GOLDEN EAGLE, venezuelano

Eram conhecidos, no Aeródromo de Cascais,  e muito comentados os problemas técnicos deste avião bimotor Cessna 421, os quais começaram a evidenciar-se logo no voo “ferry” da Venezuela para Portugal, pois saiu a 4 de Setembro de 1980 e chegou a Portugal a 16 de Outubro, o que, só por si, não precisaria de comentários, já que o movimento de um avião deste tipo pode precisar de 2 ou 3 dias mas nunca de 1 mês e 12 dias para cobrir esta distância. Pelo caminho experimentou avarias de todos os tipos, incluindo paragens de motores e três aterragens de emergência!

No aeródromo onde costumava estacionar era esta aventura muita comentada, não apenas acerca do “ferry” mas acerca do estado dos motores, uma vez que, por baixo do motor esquerdo, era bem visível uma anormal fuga de óleo. Falava-se da avaria nos alternadores, do estado da bateria, das bombas elétricas de combustível, instrumentos de bordo inoperativos, incluindo os indicadores de quantidade de combustível e, o que hoje é impensável, não estava coberto por nenhum SEGURO!

3 – A TRIPULAÇÃO.

Os pilotos que voaram o avião acidentado no dia 4 de Dezembro de 1980 tinham licenças inicialmente emitidas nas antigas províncias ultramarinas. O Comandante Jorge Albuquerque tinha vindo de Moçambique e o outro piloto, Alfredo Sousa, era possuidor de uma licença emitida em Bissau e não tinha qualquer curso de multimotores nem experiência em aviões deste tipo. Nenhum tinha licença de “INSTRUMENTOS”.

O jovem Albuquerque fora obrigado a sair de Moçambique, na sequência dos acontecimentos relacionados com a forma como a descolonização foi feita naquela província, a tal “descolonização exemplar”, não tinha ainda conseguido emprego estável e, já casado e com um filho, precisava, a todo o custo, de assegurar o sustento da família.

Esta aeronave não exigia uma tripulação de dois pilotos, porque fora certificada segundo as regras da FAR 23 e não da FAR 25. Mas até seria mais seguro voar com dois pilotos. Aliás, se este avião constasse do certificado de operador de uma empresa autorizada a fazer transporte aéreo de passageiros, seria mesmo obrigatório ter uma tripulação composta por dois pilotos qualificados no tipo de aeronave em que voavam. Só que, neste caso, do ponto de vista técnico e de segurança operacional, estes 2 pilotos não constituíam, propriamente, uma tripulação, ou seja uma equipa treinada e verificada em voo em que 1+1 são mais do que 2. Neste caso, pelo contrário, 1+1 eram até menos que 2.

Naquela época ainda não existia o curso de CRM (Crew Resource Management), hoje obrigatório, muito menos existia o SMS (Safety Management System) nem estava implantada a sua filosofia embora o respeito pelo check list fosse SAGRADO e fosse obrigatório o conhecimento e prática das emergências, sendo a “falha do motor crítico à descolagem”, de todas, a mais importante e a que mais atenção e treino requeria.

Victor Brito

                                                           (continua)

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