O legado de João Baptista Coelho

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            Tive o primeiro contacto com João Baptista Coelho quando recebi, na redacção do Jornal da Costa do Sol, datada de «Tires, 8 de Novembro de 1989», a carta que acompanhava a oferta do seu primeiro livro, Porta Aberta (Fig. 1), edição de autor, com o pedido de que «se a leitura do texto vos merecer atenção, honrar-me-ia, sobremaneira, que em qualquer das vossas futuras edições a ele fizessem uma crítica objectiva». Acrescentava: «A capa do livro é resultado do produto final dum concurso aberto entre os alunos do 12º ano do Curso Técnico-Profissional de Artes Gráficas ministrado na -Escola António Arroio no ano de 1988/1989, sob a orientação do Professor Vítor Silva. Prestaria, assim, as minhas homenagens a todos quantos quiseram ajudar a dar à estampa esta obra».

Na contracapa, ao lado da fotografia, que apresento (Fig. 2), recordava que nascera em Lisboa a 19 de Abril de 1927 e que «sem formação académica específica, cursara o Instituto Comercial de Lisboa e desenvolvera a sua actividade profissional de contabilista nos campos das artes gráficas e da indústria metalo-mecânica. Só a partir de 1985, após 45 anos de trabalho, encontrou o tempo necessário para escrever poesia. Tarde. Tarde, demais».

Essa ideia – a pena de ter chegado tarde – foi perpassando pelos seus versos. Assim, no mais recente livro em que foram publicados poemas seus (Cinzelar as palavras como as pedras… em S. Domingos de Rana, edição da Associação Cultural de Cascais em 2009), não hesita em confessar:

E se essa Porta Aberta ele a pensou «para que possam libertar-se os sons e as rimas que vislumbrei e ouvi no meu percurso», o certo é que foi mordidela boa, essa do bicho da poesia, pois João Baptista Coelho cada vez mais se esmerou no burilar das frases, de modo que – concorrendo assiduamente aos Jogos Florais organizados um pouco por todo o País – foi arrecadando prémios sobre prémios. Poderá ter sido, porventura, o poeta que mais prémios ganhou na sua vida. Já lhe perdi a conta. Mais de um milhar, creio, e cerca de 250 primeiros!

            Entusiasta por esse tipo de iniciativa, logrou que Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana lançasse mão ao lançamento anual de Jogos Florais. Tive ocasião de trabalhar com ele nessa organização e João Baptista Coelho era duma eficiência extraordinária a preparar tudo para a reunião do júri: os trabalhos divididos por modalidades, os que não poderiam ser aceites por não corresponderam às normas… Ele próprio teve ocasião de sugerir os temas a tratar. A eficiência em pessoa!

            Recordo que, por exemplo, na noite de 21 de Janeiro de 2011, houve ocasião,  na Biblioteca Municipal de Cascais – São Domingos de Rana, de o homenagearmos, devido a ter publicado, com o apoio da Câmara Municipal, Um outro Livro de Job (30 Retratos de uma Peregrinação)”. Mais uma das sessões «Noites de Poemas», dinamizadas por Jorge de Castro. Para esse livro me foi dada a oportunidade de escrever o prefácio, de que peço licença para transcrever esta passagem:

“Job se sentiu João Baptista Coelho e, por isso, em 31 sonetos (uma das formas poéticas que mais aprecia e que bem sabe burilar), contou-nos de si, dos seus vagueares, altos e baixos, sonhos, quimeras, oiros, cálices de inebriante medronho, tragos de fel bem amargo… «Uma história igual à de mil outros cidadãos», «de grandes, de pequenos, de meãos». Grão que se torna gente; que teve hora de brincar; que plantou «a velha árvore do pecado»; vagabundo; a dureza do pão-trabalho e a incandescência do pão-amor; a Poesia, «bálsamo na vida tão cinzenta», «oração que me atavia»…”.

E, decididamente, João Baptista Coelho, viagem feita, jaz escravo ganhador:

Exímio em construir sonetos, sabia manusear a quadra com o espírito arguto e bem sagaz que a autenticidade da quadra requer:

            Tendo-lhe falecido a esposa, Ilídia, que sempre o acompanhava, João Baptista Coelho retirou-se um pouco mais e, a dado momento, deixámos de ter notícias dele. Perguntávamos a A, B e C e ninguém sabia. Vagamente, de um filho, juiz, de quem ele amiúde falava e que morava na «outra banda», mas de quem não tínhamos o contacto nem sabíamos o nome. O telefone deixou de existir, o endereço electrónico também e todos os amigos e admiradores se interrogavam: «Para onde foi o Baptista Coelho?».

            A notícia do seu falecimento, no passado dia 20 de Dezembro – aos 94 anos, portanto – foi dada aos amigos por Jorge Castro no seu blogue https://sete-mares.org/, donde tomo a liberdade de recortar o seguinte depoimento, que vinha acompanhado por uma foto de 19-10-2012 (Fig. 3):

Jorge Castro

«Dele direi que conheci um homem bom. Companheiro e mestre, fiel e empenhado, em inúmeras sessões de poesia, esposo amantíssimo e de total entrega, ainda que discreto, amigo fiável como poucos, de fino humor e sempre cavalheiro.

»Relembro amiúde o episódio em que, tendo-se esquecido do seu inseparável chapéu dos dias frios, na sala da Biblioteca de São Domingos de Rana, onde desenvolvíamos uma das sessões das Noites com Poemas, ao ausentar-se um pouco mais cedo, para o invariável apoio à sua companheira, regressa, logo mais, constrangido por interromper a sessão, com um impagável «Desculpem, mas esqueci-me da tampa do talento…».

            À Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana legou todos os galardões recebidos. É bem possível que se programe, para daqui a algum tempo, a sua exposição, quiçá na altura em que a autarquia lhe conceda a honra – que não é de somenos! – de lhe atribuir nome de rua, na freguesia onde tão alto elevou o valor da Poesia! Aliás, a Câmara Municipal de Cascais agraciou-o, em 2004, com a Medalha de Mérito Cultural!

            Direi ainda que parte mui significativa da sua obra poética acabou por não ser publicada. Tenho na estante que lhe foi reservada uma série de ‘livros’ (Fig. 4 e 5) que expressamente preparou para me oferecer – como, naturalmente, a outros amigos. Quiçá uma entidade, um dia, se lembre de também essa homenagem lhe prestar. Para já, fica-nos o sentimento de perda. Senti-a neste Natal, porque tinha sempre – e bem a tempo! – uma quadra a condizer, como esta, de 2017:

2 COMENTÁRIOS

  1. Conheci este Poeta na cerimónia de “entrega” dos prémios e menções honrosas aos autores participantes de um concurso “Passa Poesia em Cascais”, promovido pela Junta de Freguesia, ainda Eglantina Ventinhas era viva.
    Tive uma menção honrosa, ou melhor, trocaram-me o nome e nunca a considerei minha. Até porque o texto, na pontuação, aparecia tão modificado, que nem eu entendia bem o poema….
    Os de Baptista Coelho entendiam-se bem. Parece que já costumava concorrer e era muito apreciado. Arrecadou mais do que um prémio, nessa altura, façanha que já era habitual.
    A sua discrição não me passou despercebida: simpático sem ser risonho, cavalheiro sem mesuras excessivas. Correcto. Creio que os adjectivos usados por aqueles que privaram com ele, não andam muito longe destes.
    Terei que informar uma Amiga brasileira, poeta também, acerca da sua morte. Conheceu-o. Talvez a viagem que projecta para vir a Portugal, coincida com a tal exposição.
    Muito grata por esta informação. Afinal somos do ofício e andamos quase tão afastados em vida, como ficamos na morte.
    Paz à sua alma.

  2. A Professora Fernanda Gonçalves, que foi presidente da Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana até às recentes eleições, teve ocasião de evocar, na assembleia de freguesia, a personalidade de Joao Baptista Coelho.
    Além de aspectos já focados no texto anterior, cumpre-nos destacar que também foi galardoado, em 2015,com a medalha de Mérito Cultural da Junta de Freguesia de São Domingos de Rana; e que, em 2016, a Junta de Freguesia da Estrela deu o nome de João Baptista Coelho à sua Biblioteca.
    Informou, ainda, que João Baptista Coelho tem o seu nome referenciado no Dicionário Cronológico de Autores com o pseudónimo de “João Apóstolo”; e que, há cerca de dois anos, o seu filho Alexandre Coelho e nora Ana Paula ofereceram à Junta de Freguesia o espólio de troféus do poeta. A intenção era vir a expô-los no Pólo Museológico Ilídio Carapeto, o que não se concretizou devido à pandemia e à falta de catalogação dos troféus.

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