O acidente de Camarate – 2

Segunda parte do depoimento de Victor Brito sobre o acidente aéreo que vitimou o primeiro-ministro português, Francisco Sá Carneiro, em 4 de dezembro de 1980. Victor Brito foi piloto da Força Aérea e um dos mais conceituados peritos portugueses em aeronáutica. Nesta parte, explicam-se as circunstâncias técnicas e humanas que levaram à queda do avião.

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4 – A ENTIDADE OPERADORA

Não conhecemos em que condições o avião foi contratado nem que “negócio” foi feito por quem encomendou este voo, mas sabemos que em Portugal não havia, então, nenhuma empresa certificada para transportar passageiros, tipo charter ou táxi aéreo. O transporte aéreo de passageiros era prerrogativa exclusiva da SATA e da TAP. Quando muito, uma empresa de outro sector de actividade (caso da RAR), ou um simples cidadão, poderiam adquirir um avião e utilizá-lo para seu próprio serviço, ceder os seus serviços gratuitamente a alguém mas não o poderiam alugar, pois só em 1984, quatro anos depois, foi liberalizado o transporte aéreo no nosso país. Por este motivo, a operação deste avião foi feita sem o apoio operacional, técnico, organizativo e de segurança próprio de uma empresa de transporte aéreo; isto é, não dispunha de qualquer estrutura de apoio atrás de si. Era um voo “PIRATA” feito num avião não menos pirata.

5 – PREPARAÇÃO DO VOO, ARRANQUE, ROLAGEM E DESCOLAGEM

O comandante do avião, chegado ao aeroporto de Lisboa, cerca de 30 minutos antes do ETD (Estimated Time of Departure – tempo estimado da partida), decidiu esperar pelos passageiros antes de passar para “o lado ar”, onde o avião se encontrava e onde a inspeção antes do voo deveria ter sido feita.

O primeiro passageiro a chegar ao aeroporto foi o Dr. Sá Carneiro, que ficou na sala de VIP à espera do Dr. Amaro da Costa. O comandante deslocou-se, então, para o parque Delta, onde o avião estava estacionado, mas os passageiros chegaram apenas cinco minutos depois. Ora, uma inspecção daquele avião, com dezenas de itens a cumprir, demora muito mais tempo.

Era de noite, estava frio, 6º C, e a iluminação no parque Delta era muito fraca, quase inexistente. Não havia nenhum técnico em terra para assistir à saída do avião.

Para verificar visualmente a quantidade do combustível a bordo era necessário subir com um escadote, pois os tanques principais (tip tanks), estão a cerca de 2 metros de altura e, sendo de noite, era preciso utilizar uma lanterna e uma vareta medidora. Sabemos que não havia vareta.

Entrados os passageiros, procedeu o piloto, de imediato, ao arranque do motor direito, que só pegou ao fim de várias tentativas. Iniciou depois o arranque do motor esquerdo, tendo esgotado a bateria sem conseguir que ele pegasse. E, não havendo ninguém por perto para o ajudar, pediu, através do rádio, que a TAP lhe emprestasse um gerador de corrente eléctrica, única maneira de continuar as tentativas de arranque.

Aguardou pela chegada do gerador e lá conseguiu, ao fim de mais 20 minutos de tentativas, fazer pegar o motor esquerdo, embora com um funcionamento irregular e, segundo o mecânico da TAP que ligou o gerador ao avião, sempre a falhar!

O piloto pediu à torre autorização para iniciar a rolagem e descolar imediatamente.

Tinham, entretanto, passado 35 minutos com os passageiros dentro de um pequeno avião sem aquecimento. O comandante, preocupado com o atraso e muito provavelmente pressionado pelos seus passageiros, aproveitou o tempo de espera até que o gerador chegasse, para saber, através da torre, se o avião da TAP, a sair para o Porto àquela mesma hora, ainda tinha reserva para os seus passageiros. Era evidente que se encontrava, psicologicamente, em estado de stress, sentia-se inseguro. Nenhum piloto gosta de voar um avião cujos motores não pegam à primeira.

Descolou de imediato, NÃO a partir do início da pista de serviço, pista 36, como seria normal, mas a partir da interceção desta com um caminho de acesso. O piloto, muito fatigado pelo esforço feito nos últimos dias e naquele próprio dia, com o seu ego em baixo, precisava de mostrar que era profissionalmente competente, não queria atrasar ainda mais a saída e, para poupar tempo, prescindiu de fazer o aquecimento do motor nº 1 e executou uma descolagem do tipo “rolling take off”, recolheu o trem e experimentou a paragem do motor esquerdo, isto é, do motor crítico.

A partir deste momento, não dispondo de pista suficiente para abortar a descolagem, deveria ter confirmado que o motor direito estava à potência máxima, ter colocado o hélice do motor esquerdo em “bandeira” e selecionado os flaps para a posição UP, mantendo, ao mesmo tempo, a velocidade Vy, a que assegura a melhor razão de subida com um dos motores parado e mantendo a direcção da pista. Mas, esperançado de que ainda estava a tempo de retomar a marcha do motor parado, seleccionou ou, mais provavelmente, mandou selecionar a respectiva válvula de combustível para a posição “crossfeed” (alimentação cruzada), ou seja, para a asa direita. Esta mudança de depósito foi, contudo, mal feita: em vez de se ter rodado o seletor 90º no sentido dos ponteiros do relógio, rodou-o no sentido contrário, fixando-o na posição OFF, isto é, “desligado”, anulando, assim, a possibilidade, que ainda existia, de evitar a tragédia.

Quando o motor parou, teve também que aplicar força no leme de direção direito, empurrando o respetivo pedal todo a fundo, teve que baixar a asa do mesmo lado com o fim de manter a direcção e o avião a voar, embora a uma velocidade perigosamente baixa, muito perto da velocidade de perda e da “VMC” (velocidade mínima de controlo), tentando evitar que ele virasse, de forma descontrolada, para a esquerda, o que, fatalmente, acabou por acontecer 20 segundos depois da descolagem.

Com efeito, o centro de gravidade do Golden Eagle, com 7 pessoas a bordo, ou seja, com todos os lugares ocupados mais um, encontrava-se descompensado, no sentido traseiro, isto é, estava fora dos limites no sentido longitudinal, enquanto no sentido lateral, estava igualmente desequilibrado para o lado direito, pois os tanques da asa esquerda estavam vazios e os da outra asa estavam cheios.

A agravar estas condições, passou a voar com o hélice esquerdo não em bandeira mas em wind milling (“moinho de vento”), situação em que a resistência aerodinâmica ao avanço imposta por este hélice impede definitivamente o avião de voar. Isto porque, ao arrastar consigo todos os seus componentes – como cilindros, magnetos, alternadores e várias bombas – cria uma resistência maior do que a força de tracção que o motor operativo (o direito) produz para a ela se opor. Os efeitos de assimetria aumentam proporcionalmente.

Por fim, os últimos segundos do voo poderão ter sido passados sem luz no cockpit, dado que o alternador do motor direito, como se disse, se encontrava inoperativo. O motor direito, a trabalhar, gerava, com o sopro do hélice, alguma sustentação aerodinâmica adicional na asa direita, enquanto a asa esquerda, com o respetivo hélice a rodar em “windmilling”, não beneficiou desse aumento de sustentação. Foi por isso que a asa esquerda entrou em perda antes da direita e, consequentemente, foi também por isso que o avião colidiu primeiro contra os obstáculos com esta asa.

Se os procedimentos de emergência tivessem sido executados corretamente, partindo do princípio de que o centro de gravidade estava dentro dos limites, a performance de subida do Cessna 421 ficaria reduzida a apenas 20% da sua capacidade de subida com dois motores. Na medida em que o centro de gravidade se encontrava fora dos limites, o hélice do motor esquerdo não estava em bandeira e o motor direito não deveria dar a potência máxima, o avião não conseguia subir, isto é, para manter a velocidade necessária para voar tinha que descer, trocando a energia gravítica por energia cinética. Como se encontrava a muito baixa altura sobre os obstáculos, ao descer, colidiu com estes.

Note-se que o motor parado era o crítico, aquele que causa maiores dificuldades de controlo do avião quando para e não é posto imediatamente em bandeira.

Para se ter uma ideia da complexidade de operação de alguns bimotores a “piston” é oportuno notar que, nos anos 80 do século passado, num período em que muitos americanos podiam comprar o seu próprio avião, ocorreram, proporcionalmente, bastante mais acidentes fatais com os bimotores do que com os monomotores, porque voar um avião monomotor era e é muito mais simples e constituía tarefa que podia ser desempenhada por um piloto com pouca experiência, ao passo que voar um avião bimotor do tipo do Cessna 421, pressurizado, equipado com motores turbo, com velocidades superiores a 250 knots [um knot equivale a 1.852 km/h], com tecto da ordem dos 30 000 pés, elevada performance com dois motores e com muito baixa performance quando voava só com um, é muito mais complicado e requer um grau de profissionalismo que faltava à maioria dos pilotos que tinham capacidade financeira para os comprar.

O Pilot´s Hand Book (Manual do Piloto) destes aviões não inclui no seu capítulo de performance nenhuma curva ou gráfico para voar com o motor crítico parado e o respectivo hélice não em BANDEIRA. Com a posição do passo do hélice em «windmilling», como foi o caso, o avião, simplesmente, NÃO VOA!

Victor Brito

Link para a 1ª parte deste artigo            (continua)

1 COMENTÁRIO

  1. Não me digam que as operações da CIA, Trafico de armas para Israel que passavam po Portugal, Resgate de reféns no Irão, o Ministro da defesa que meteu o nariz onde não devia são tudo teorias da conspiração??

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