Beatrix Cenci – o espectáculo

Tecemos noutro lugar alguns comentários acerca da relevância do texto que a Doutora Graça P. Corrêa propôs – com dedicatória a Carlos Avilez, «amante intenso do Teatro» – para a peça «Beatrix Cenci», ora em cena no Teatro Municipal Mirita Casimiro, desde 13 de Novembro. Foquem-se agora dois ou três aspectos do espectáculo em si.

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Deverá anotar-se, em primeiro lugar, que de um simples folhear dos textos de apoio ressaltará a noção clara de a Escola Profissional de Teatro de Cascais se poder vangloriar de ser bem fecundo alfobre de actores e, por outro lado, desse mero folhear há-de resultar a consciencialização de que – tanto no que se refere aos variadíssimos aspectos técnicos que tornam possível um espectáculo como à arte de representar em si mesma – estamos em presença de pessoas com larguíssima experiência e vasto currículo já, gente que não tem parado e vai de actualização em actualização, para nos fornecer, alfim, algo simples na aparência e que é, todavia, fruto de longo estudo e mui árdua preparação. Nesse aspecto, não é de admirar, por exemplo, que Carolina Faria, de 18 anos, formada em Agosto passado com a sua intervenção em «Os Gigantes da Montanha», integre já este elenco, na figura de Beatriz aparição.

Sim, são os actores que estão à vista; sabe-se, contudo, e nunca é de mais repeti-lo que o espectáculo se faz de som, som que não são apenas os trechos musicais sabiamente escolhidos para realçar uma passagem mas todo o conjunto de sons de ambiente; faz-se de luz, luz que ilumina ou que falta, ‘desenho de luzes’ é a bonita expressão ora usada (aqui pela mão de Fernando Baranda); faz-se de… vídeo! Nesta Beatrix, mui oportunamente se recorreu ao vídeo (obra de José Teresa Marques) projectado na pantalha ao fundo, para documentar as realísticas cenas de orgia perpetradas pelo conde em sua mansão ou para nos transportar a ambientes de mar, bucólicos ou de simples colorido a complementar a cena. Tudo se passa, aliás, à nossa frente, como vem sendo hábito nos espectáculos do TEC. Não há pano de cena, não há pancadinhas de Molière, há luz que se apaga e cirurgicamente se vai acendendo. O espectador ‘está’ em cena, sem barreiras. E vem falar connosco Artemisia Gentileschi (Teresa Corte-Real), a pintora que, aos 6 anos, assistiu à decapitação de Beatrix. Nessa altura, gostávamos de ter um gravador ou a possibilidade de ler depois, nos textos de apoio ou em livro, esse ‘discurso’ ou esses discursos, veículos, se bem compreendi, usados por Graça P. Corrêa para trazer a cena à actualidade.

Encontra-se, em todas as peças teatrais, uma infinidade de pormenores que foram meticulosamente analisados, discutidos. Difícil, muito difícil se torna apanhar o significado deles, na sua maior parte. Por isso há, de vez em quando, mesas-redondas em que os intervenientes explicam por que razão seguiram esta e não aquela proposta.

Postulava-se uma dessas mesas-redondas, a respeito desta Beatrix Cenci. Não digo tanto sobre a história em si e o que ela representa de feroz libelo contra o poder desumano da economia, do prestígio social, da religião, mas sobre a ‘leitura’ que ela implicou para chegarmos a este espectáculo, com esta dramaturgia e não outras, estas marcações e não outras, com este cenário e não outro, com este guarda-roupa (mão de Fernando Alvarez)… Pouco a pouco, no espírito do espectador, após a saída, haverá imagens que reteve mais do que outras, cenas que mais o impressionaram ou lhe proporcionaram encanto.

Ao ler algo do muito que se escreveu sobre a história de Beatrice Cenci, uma perplexidade terá surgido: como é que isto se passa para a cena? De uma forma brutal, sim, em provocação evidente e feia; mas sem o recurso fácil a cenas susceptíveis de chocar sensibilidades.

Veja-se, a título de exemplo, a forma realmente engenhosa e perfeita do ponto de vista cénico como se representou um momento da incestuosa violência sexual por parte do pai. Ele, de pé, hirto, olha sadicamente para a filha que, deitada à sua frente, estrebucha, grita, chora, clama!… E ele, impertérrito, sem palavras, esbirro. Mas no chão, ao lado, o servo mudo, Santi (muito boa interpretação de Francisco Monteiro Lopes), no estertor próprio de quem assiste ao acto…

É Renato Godinho – também ele antigo aluno da Escola Profissional de Teatro de Cascais e com muito trabalho desenvolvido já igualmente em cinema e televisão –quem incarna a figura do Conde Francesco Cenci. Um rigor levado ao extremo, na atitude precisa, na entoação adequada. Candidato sério, a meu ver, ao título de «melhor actor do ano». Acompanha-o muito bem Soraia Tavares, uma Beatrix muito segura do seu papel, a demonstrar bem quanto já aprendeu desde que iniciou, em 2009, os estudos na EPTC; encantou-nos com a sua voz, não só quando, em 2015, logrou chegar à semifinal do concurso «A Voz de Portugal», mas agora, ao interpretar uma ária da ópera que Berthold Goldschmidt apresentou, em 1949, sobre a história de Beatrice.

O drama «Beatrix Cenci» está em cena no Mirita Casimiro (Monte Estoril), até 12 de Dezembro, quartas e sábados às 21 horas, domingos às 16. O espectáculo, sem intervalo, tem a duração de duas horas e é para maiores de 14 anos.

imagem partilhada do Facebook do TEC

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