Terminada a COP26, parece-me pertinente discutirmos alguns dos muitos prazeres que saboreamos neste nosso admirável primeiro mundo e que os marotos dos cientistas, liderados pela poderosíssima enfant plus terrible du planète nos querem retirar.
Um dos grandes prazeres da vida é saborear uma excelente refeição, com entradas, aperitivo, prato principal, sobremesa e digestivo, repleta de iguarias que percorreram meio mundo até aterrarem no nosso prato, num ambiente sofisticado e devidamente climatizado. Desde quando é que isso pode ser batido por carne, peixe, leite, ovos e legumes locais, com fruta biológica, provavelmente cheia de bicho, num espaço em que a temperatura até nos obriga a vestir um casaquinho??
E haverá algo que se compare àquele cheirinho a carro novo, com uma estereofonia que nos permita ouvir o “Tubo de Ensaio”, entre outros grandes êxitos divertidos radiofónicos matinais, que até nos fazem ter pena quando o trânsito se move e nos descarrega no emprego tão cedo que nem conseguimos ouvir a conclusão do alegre “O Homem que mordeu o cão”, que o carismático Nuno Markl debita pelas ondas hertzianas? Agora comparemos isso com um metro – ou autocarro – apinhado, onde a playlist mais positiva do mundo nos entra pelas orelhas através de earphones bluetooth com um poderoso baixo, mas que não é suficientemente potente para anular um ou outro sovaco mais descuidado, já para não falar de uns restos gasosos do chicken tikka masala que alguém não digeriu devidamente na noite anterior.
E haverá algo mais prazeiroso do que desembrulhar um telefone novinho em folha, quiçá em frente a uns milhares de seguidores nas redes sociais, porque nada merece mais atenção do que vislumbrar o mais recente gadget adquirido pela estrela influenciadora do momento? Comparemos isso com o nosso desmazelado equipamento de vidro partido e memória quase cheia, que não nos deixa likar devidamente os comentários mais impactantes do momento, como seja troçar da pegada ecológica do percurso percorrido pelos líderes da COP26 até à fria Escócia.
Estes são os nossos pequenos prazeres, aqui nesta enfadonha Europa e América do Norte, onde sofremos diariamente na pele os terríveis impactos das crises económicas, o mal-estar causado atrás das orelhas pela obrigatoriedade em usarmos máscara ou, pior ainda, a impossibilidade de organizarmos jantaradas com os amigos durante tantos e penosos meses, num perigosíssimo alerta ao barramento das nossas liberdades individuais, por parte dos sistemas governativos autoritários – quase tirânicos – que por aqui temos ao leme.
(Mensagem aos/às leitore/as mais desatento/as: os parágrafos anteriores pretendiam ser irónicos…)
Para que servem tampinhas de garrafas de plástico
No resto do mundo, os prazeres são outros. Em 2015 estive numa conferência em Tenerife e o meu amigo Brian tinha acabado de regressar de Madagáscar, por onde andou durante semanas em busca de uma espécie de peixe julgada extinta. Conseguiu localizar dois exemplares, mas não foi só isso que lá encontrou. Também deu de caras com a pobreza e carências mais abjectas que já alguma vez tinha testemunhado e estamos a falar de um naturalista que percorre os quatro cantos do mundo em busca de organismos raros. Mas, no meio da maior seca que o país jamais tinha experimentado, o Brian encontrou sorrisos suplicantes, que lhe foram oferecidos por crianças quando conseguiam deitar a mão às tampas das garrafas de plástico (catadas pelos adultos) que os (poucos) turistas mandavam fora. Porque, em Madagáscar, uma tampinha de plástico de uma garrafa serve para tirar umas gotas de água duma poça na lama e beber essa água. Uma tampinha de garrafa é um tesouro que permite às crianças sorverem as primeiras gotas de água que lhes tocam nos lábios em dias, mesmo que, nessa água, um cão sarnento tenha defecado minutos antes.
Mas continuemos a falar de pequenos prazeres, como seja a chegada de um camião da ONU carregado de sacos de cereais que tiveram a sorte de escapar aos mafiosos que controlam estas entregas a populações esfomeadas. Há uns dias a minha mulher Sérvia contou-me, em lágrimas, que, no Iémen, as crianças estão a comer as próprias mãos de tanta fome que têm. Vou deixar-vos ler novamente a frase anterior antes de prosseguir.
Convencido que uma pequena disfunção linguística certamente a fez entender mal o título da notícia, googlei a mesma. Não deu muito trabalho, porque o Google completou-me a frase à medida que a teclava, como se adivinhasse aquilo em que estava a pensar. Não encontrei um artigo a narrar o choro silencioso das crianças, cujas cordas vocais estão tão secas que já nem lhes permitem chorar; encontrei dezenas – centenas – de descrições horríficas do que se passa nesta região, assolada pela guerra e seca.
Por falar em seca e guerra, já a tese de mestrado – em ciência política – da minha Nina tinha versado sobre o caso da Síria, onde uma seca de magnitude épica levou milhões de refugiados a meterem-se à estrada com a roupa no pelo e os filhos ao colo. Essa despopulação do país abriu caminho ao Daesh, que o tomou de assalto em poucas semanas. Foram precisos anos de destruição para correr com eles, mas a guerra civil – que já existia – ainda dura. Nem sequer me vou aventurar nesses meandros políticos, porque me falta a qualificação técnica para tal, mas uma coisa é certa: a seca forçou milhões de pessoas a abandonarem as suas casas.
Eu bem os vi, em outubro de 2018, quando regressava de Istambul num camião com 15 raias, que entreguei no Aquário de Madrid. Depois de entrarmos na Bulgária, para logo sairmos para a Grécia, percorríamos uma estrada em direcção a sul, contígua à fronteira com a Turquia, onde um amontoado de pessoas no meio da estrada nos levou a pensar que alguém tinha sido atropelado. Só quando nos aproximámos percebemos que eram umas poucas dezenas de refugiados, homens, mulheres, crianças, velhos e uma menina de três ou quatro anos que, de casaquinho de malha rosa, chorava baba e ranho que já não tinha, ao ver a polícia grega arrastar os pais, primos, tios para fora da estrada, pelos pés, enquanto esperneavam e o resto da família mandava cabeçadas nos vidros do nosso camião e tentavam entrar na galera, numa tentativa desesperada de deixarem um sítio onde se comem as mãos, para abraçarem o eldorado Europeu onde nós, primeiro-mundistas, sofremos diariamente com problemas tão terríveis quanto a falta de sinal wi-fi no Metro.
Para que serviu a COP26
Não tenhamos ilusões: na COP26 não se discutiu o futuro do planeta, que cá continuará depois da nossa passagem efémera, onde os nossos ossos vão ser estudados com curiosidade científica pela próxima espécie dominante, montando o nosso esqueleto à entrada de Museus de História Natural, como se de um Tyranossaurus se tratasse. Mas podemo-nos permitir algum conforto porque, sejamos pragmáticos, tenhamos consciência de que não vamos todos desaparecer; nós, os pobres europeus e americanos, que tanto temos sofrido à conta desta pandemia que fez filas de horas à porta de hospitais, vamos cá continuar. Mais grau, menos grau, mais casaco, ou menos chinelo, mais protector solar ou menos braseira, cá continuaremos alegremente a comentar o estado do mundo, com mais frio ou calor, porque temos casas, dinheiro e meios para sobreviver.
Mas isso somos nós. O resto do mundo não. A esses pobres desgraçados não lhes resta muito mais para além de comerem as mãos quando têm fome, ou esperar que os vídeos em que o fazem nos tragam uma lágrima ao canto do olho e, já agora, nos façam transferir meia dúzia de dólares que lhes meta qualquer coisa no estômago.
Na COP26 não se decidiu o futuro da Humanidade. Na COP26 decidiu-se o futuro da humanidade da Humanidade.
E, como todos vimos e sabemos, a probabilidade de os discursos acalorados, metas e valores que ouvimos passaram à acção é, na melhor das hipóteses, remota. Vamos finalmente começar a tomar medidas que poupem dois terços da população deste planeta ao sofrimento a que os nossos hábitos diários os votam desde o fim da Segunda Guerra Mundial? Ou vamos continuar a fazer de conta que todos estamos empenhados neste esforço de salvar o planeta porque passámos a usar sacos de compras reutilizáveis, em vez de sacos de plástico? As palavras proferidas asseguram-nos que sim, vamos. Mas a experiência diz-nos que continuará tudo na mesma – como a lesma.
Precisamos de fazer mais. Precisamos de fazer muito mais. Infinitamente mais. Não me perguntem o quê, porque quem descobrir a resposta a essa questão merece uma estátua do tamanho do mundo e eu não tenho uma fracção da esperteza necessária para tal. Mas uma coisa é certa, depois de tantos anos a tirar, podemos dar. E dar. E dar. E dar. E dar. E podemos doar, podemos votar, podemos organizar, podemos falar, podemos gritar, podemos protestar, podemos abraçar, podemos partilhar, podemos chorar, podemos mandar muito e muito e muito dinheiro para organizações que efectivamente façam alguma coisa por esta gente. Acima de tudo, podemos mostrar ao resto do mundo que sabemos aquilo por que estão a passar e sabemos que não é nada comparado com o que aí vem. Sim, porque, enquanto os nossos ares condicionados nos protegem dos quentes e frios intensos que já nos batem ocasionalmente à porta – e que se tornarão progressivamente mais intensos se continuarmos neste rumo –, não há mãos suficientes para saciarem a fome dos outros, que não vivem neste cantinho de céu que forjámos aqui para nós. Estamos numa panela que já está demasiado quente para ser arrefecida. Mas nós conseguimos regular a temperatura da nossa panela; eles, não.
Na COP26 não se decidiu o futuro da Humanidade. Na COP26 decidiu-se o futuro da humanidade da Humanidade. Resta ver se vamos passar das palavras aos actos…