Porquê esse meu foco sobre a população reclusa e suas famílias, incluindo milhares de crianças inocentes? Certamente para apoiar uma das franjas mais vulneráveis da nossa sociedade, mas, naquele momento, também para alertar para emergentes problemas de saúde pública e a que os diversos poderes nem davam troco.
Quem bem quiser conhecer um país, terá de descer às suas prisões. Qualquer coisa não bate certo, quando Portugal é dos destinos mais seguros do mundo e mantém a mais alta taxa de reclusão de toda a Comunidade Europeia.
Não podendo oferecer visitas guiadas às lusas catacumbas, que são as prisões, exponho alguns “retratos” que revelam duras realidades, desconhecidas por muitos portugueses intoxicados pela propaganda de gente sem escrúpulos, nem valores.
Nos últimos anos, forte com os fracos e fraca com os fortes, a máquina infernal da nossa Justiça deteve preventivamente mais de cem mil cidadãos, depois nem sequer acusados ou considerados inocentes.
Vítimas de abusos de poder, erros e até falhas processuais, fedem em minúsculas celas, sem salubridade nem higiene, centenas de pessoas que são feitas da mesma massa que nós. A que há ainda que somar milhares de pilha-galinhas, a quem também é negada formação cívica e profissional digna desse nome.
Em vez de locais de reinserção social, muitas das nossas prisões não passam de cárceres onde, ao arrepio das leis de um Estado de direito e social, se praticam abusos inconcebíveis, assim se instilando ainda mais ódio e violência na sociedade. E até o SNS falha inapelavelmente, com as nossas estatísticas a acusarem as mais altas taxas de mortalidade e de suicídio em toda a Europa.
Com o avanço da pandemia e as prisões sobrelotadas, havia que tomar medidas cautelares urgentes para se evitarem maiores riscos em milhares de reclusos e também entre as dezenas de milhares de cidadãos que os rodeavam.
No entanto, não seriam estas degradantes condições, que são sistematicamente condenadas por todas as instâncias internacionais e que envergonham qualquer pessoa de bem, que teriam o condão de demover uma classe política que só reage em função de votos fáceis. Não fosse o sacudir do sistema prisional, que temia maiores perigos e se encontrava em rotura, e, por certo, nunca teria sido promulgada a lei que, então, concedeu a liberdade a dois mil reclusos.
Esta seria, afinal, uma medida justa e que se revelou sensata, não tendo acarretado nenhum impacto na criminalidade: menos de 1% de reincidentes e, mesmo assim, só pequenos delitos. Nesta análise, será ainda preciso ter presente que vários reclusos foram postos em liberdade sem dinheiro, sequer, para chegar a casa, enquanto outros, sem garantia de sobrevivência no exterior, até optaram por voltar à prisão.
Mas nem tudo é fel no nosso país: realço que alguns guardas prisionais abriram as suas próprias bolsas quase vazias para que alguns desses libertados não tivessem de ir pedir esmola, ou roubar, para usufruírem da liberdade.
Todas estas verdades são bem conhecidas, mas não comoveram os Serviços de Reinserção Social e os Tribunais de Execução de Penas, que, logo a seguir, não aliviaram, nem aliviam práticas extremadas, muitas delas sem qualquer critério. Pelo contrário, apostadas em impedir visitas, limitar saídas precárias e travar liberdades condicionais, até se optou por não mais aplicar a nova lei aos reclusos que, entretanto, já podiam dela gozar. E foi assim, rapidamente, que as prisões voltaram a transbordar.
Superando as práticas irregulares das demais instituições sob a jurisdição da Constituição da República Portuguesa, os Serviços Prisionais pouco mais fizeram do que suspender os direitos legais de cidadãos sob a sua dependência, a que devem criar condições para um equilíbrio emocional e uma reinserção eficaz, na sociedade.
Controlada a pandemia, e num momento em que a DGS e a OM anunciam um forte alívio nas medidas sanitárias em todo o país, impõe-se que as entidades responsáveis promovam a rápida reversão de despropositadas e até injustas restrições em vigor nos estabelecimentos prisionais, eventualmente recorrendo ao parecer técnico de entidades com reconhecida competência.
Rómulo Mateus, o responsável máximo pelos serviços prisionais, tem hoje nas mãos a honrosa e urgente missão de equilibrar as regras correntes na área que dirige com as que vigoram nas demais instâncias sob a dependência de um Estado que se diz de direito e social.
(Reflexão sobre o livro “Covid-19 – A Tempestade Perfeita” (no prelo), a propósito das magras medidas de “desconfinamento”, recentemente anunciadas no sistema prisional).