Comecemos pelos Censos, que acabei de preencher e admito que sou um daqueles nhonhós que gosta de fazer estas coisas e de fazer parte do tecido social produtivo, para utilizar a nomenclatura moderna. A coisa começou com o pé esquerdo, porque não recebi a carta com os códigos. Ou então meti-a no lixo sem dar por isso, o que não seria inédito. A dada altura tentei ligar para a linha de ajuda que, admitamos, não ajudou grande coisa. Depois tentei ir à Junta de Freguesia pedir outra carta, mas bati com o nariz na porta porque, agora, só funciona por marcação. E quando começavam a coçar a cabeça e a interrogarem-se “Então mas este gajo não ia escrever sobre coisas fofinhas da nossa terra?…” chegámos a casa, depois de uma passeata de fim de tarde, para encontrarmos uma senhora com um colete amarelo e as letras “Censos 2021” quando saímos do elevador. “É o senhor do 7º C?” perguntou, ao que respondi alegremente “Sou sim senhora e ainda bem que a vejo, porque não tenho códigos para preencher o Censo!” Ainda eu não tinha terminado a frase e já a senhora me estava a colocar uma carta na mão e, ao abrir o website com os dados da dita, logo apareceu a minha morada exacta, o que me fez sentir imensamente especial! “Isto é que é serviço!” pensei com os meus botões.
Recuemos a 2017, ano em que a minha querida esposa pegou nas suas armas e bagagens e se mudou para cá, vinda da Sérvia. Demos início ao processo de casamento no Registo Civil da Av. Fontes Pereira de Melo, temendo uma epopeia de pesadelos administrativos mais kafkianos do que “O Castelo”. Mas não. Marcámos a data e lá fomos a uma pré-audiência, acompanhados de uma tradutora, porque a Nina ainda não falava português. Depois pediram-nos uma papeleta emitida pelo governo sérvio a comprovar que a minha noiva não era casada. Este documento teve de ser traduzido, algo que conseguimos com um simples telefonema para a Embaixada da Sérvia. Seguiu-se o casamento propriamente dito – também nas instalações da Fontes Pereira de Melo – em que fomos vestidos de Anakin Skywalker e Padmé Amidala, o que despertou um sorriso mal disfarçado por parte do condutor da Uber e dos presentes no Registo Civil, incluindo a senhora Conservadora. Mas o momento mais inesquecível surgiu logo a seguir, quando um casal de dois rapazes – que aguardavam pela sua vez de darem o nó – não conseguiram, nem tentaram, disfarçar a risota perante os dois estarolas que decidiram casar-se mascarados – em dezembro. Gosto (muito) disso na nossa terra: naquele cenário, os estranhos éramos nós.
Seguiu-se um belo almoço na Pizza Hut da mesma avenida porque, como já se percebeu, somos ambos pessoas de gosto refinado. Ainda a caminho de casa ligámos para o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras para marcar uma audiência para a Nina, a quem avisei da reputação maquiavélica da rapaziada do SEF. Mas não. Fui atendido por uma voz simpática, que marcou na hora a nossa audiência para o julho seguinte, dali a 7 meses! Mas poucos dias depois já tínhamos na caixa do correio um documento a validar essa marcação, que a Nina pôde usar para entrar e sair do país sem qualquer dificuldade, durante o período de espera. No tal dia de julho, à hora marcada, esperámos não mais de vinte minutos até nos chamarem. Colocámos em cima do balcão os documentos que nos tinham dito que seria necessário levarmos, mais umas fotografias tipo passe, que despoletaram de imediato risota do outro lado do guichet. “Já não é preciso nada disso! É só encostar-se ali à máquina!” que fotografou a minha linda esposa, enquanto eu ia efectuando o pagamento de, se não me engano, 15 ou 16 euros. Umas duas semanas depois estava o cartão de residente na caixa do correio. Nada mau!
Pulemos agora para este belo 2021, ainda salpicado por alguma estranheza que, no meu caso, inclui a grande seca que é – ou era – a renovação do cartão do cidadão. Estava eu a preparar-me para um calvário de marcação online e perdas de tempo, quando decidi googlar “renovação online cartão do cidadão”. Em menos de cinco minutos, usando a sublime “chave móvel digital” (provavelmente a melhor invenção depois da flashdrive), tinha o bicho renovado! Entretanto já recebi a carta com os códigos novos e coordenadas de pagamento. Dentro de dias terei aqui um senhor – ou senhora – dos CTT a entregar-me o malvado em mão, como manda a lei – literalmente.
Por falar em “cartões” e renovações, quem é que se lembra da pastilha que era pedir certidões de não-dívida à Segurança Social e/ou Autoridade Tributária e Aduaneira, quando ainda se chamava Direcção-Geral de Contribuições e Impostos? Hoje em dia, com meia dúzia de cliques online está o assunto arrumado. Mas o que mais me maravilhou foi quando, recentemente, arrumei dois certificados de registo criminal, um para mim e outro para a empresa, com uma dezena de cliques e dois pagamentos de 5 euros cada. E, já que abrimos a porta da nostalgia, quem é que se lembra do significado da expressão “Ir ao banco” há 15 ou mais anos? Quando era miúdo, no Cartaxo, nada me despertava mais terror do que quando o meu pai me pedia para “Ir à Caixa”, ou “Ir à Casa do Povo” ou “Ir à Câmara”. Muitos de vós não se lembrarão disso, mas a pessoa ia à Caixa Geral de Depósitos e a caderneta da nossa conta era actualizada à mão, depois de umas belas horas de fila de espera.
Como dizem os americanos, “We’ve come a long way, baby!” e é preciso ter noção que este modernismo desenfreado não é assim em todo o lado. Aliás, quanto mais viajo mais impressionado fico com as maravilhas (tecnológicas e não só) da nossa terra, que dá dez a zero a muito país dito “civilizado”, dentro e fora da União Europeia. Experimentem usar um ATM (ou caixa Multibanco) no estrangeiro e notarão imediatamente a diferença entre esses monos sem graça e as sofisticadíssimas máquinas portuguesas, que permitem praticamente tudo, pouco mais faltando do que tirar cafés.
Em suma: não somos um país perfeito, mas eu cá prefiro um presidente que não se importa de tirar selfies, a um palerma ridículo (felizmente já parte do passado) que se recusou a revelar as suas declarações de impostos. Chamem-me ingénuo, mas eu sempre preferi a nossa abordagem covidesca, às que vimos noutros países, muitos deles mesmo aqui ao lado. É certo que batemos bem perto do fundo no final de janeiro mas, analisando bem as coisas, saiu-nos a sorte grande no que diz respeito a este malvado SARS-CoV-2. Quem duvida, que fale com amigos brasileiros, americanos, indianos ou, até, checos, que estão aqui bem mais próximos.
A minha esposa sérvia partilhou comigo vídeos da abordagem das forças da lei da sua terra a cidadãos que, no pico da pandemia, estavam sentados alegremente num banco de jardim em Belgrado, poucos segundos antes de levarem uma chuva de bordoadas de cassetetes brandidos com violência contra os seus couros cabeludos. Bem sei que foram cometidos erros e excessos na nossa terra mas, não me lixem, mesmo assim prefiro ser abordado por um(a) agente de pólo azul bebé, que educadamente me pede para circular e respeitar as regras do confinamento, em vez de me brindar com uma sarrafada de porrada sem sequer dizer bom dia.
Nem tudo é perfeito, mas apraz-me viver numa terra onde ainda imperam a sensibilidade e o bom senso. Na maior parte das vezes.