Cascais não tinha muros!

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1527

            O 25º quesito do inquérito distribuído a todos os párocos após o terramoto de 1755 rezava assim: «Se a terra for murada, diga-se a qualidade de seus muros; se for praça d’armas, descreva-se a fortificação; se há nela ou no seu distrito algum castelo ou torre antiga e em que estado se acha ao presente». E o Padre Manuel Marçal da Silveira foi perentório: «… se responde que não tem muros». Não teria?

Os muros de Cascais

Sim que há muros em Cascais, como os há em todas as terras, que peritos em os erguer são sempre os seres humanos. Deitou-se um abaixo em Novembro de 1989; mas, recentemente, um presidente clamava que, desse por onde desse, ele mandaria erguer um para que ninguém o saltasse. Não teve, porém, oportunidade de cumprir o desiderato.

Direi que dos «muros» concretos de Cascais, há dois tipos que particularmente me agradam: os valados de pedra solta, bem protegidos pelas silvas e abrunheiros silvestres, que ainda se vêem pela Cascais rural, de Birre até à Areia, por exemplo, e nos terrenos que restam sem construções nesse interior; e, em ambiente urbano, as paredes altas sem janelas e mesmo muros de vedação de quintais antigos, painéis benquistos pelos artistas urbanos – e passearmos pelo Bairro da Torre é ocasião de maravilha.

Duns e doutros não teria que falar o prior e o que ele quis dizer foi que não se comparava Cascais com uma Óbidos ou Évora ou Elvas ou Almeida, povoação todas elas protegidas por muralhas. Em Cascais, bem depressa a população saíra do recinto amuralhado e se espalhara quer para norte, quer para um lado e outro da Ribeira das Vinhas. De facto, dois templos – a Igreja de Nossa Senhora da Assunção (a igreja matriz) e a Igreja dos Navegantes – marcariam como que os pólos de atracção de tão remotos tempos. E, ainda hoje, nos sentimos ‘medievais’ ao percorrer essa teia de ruelas entre as duas…

Sim, muralhas propriamente ditas não as haveria; subsistiam, contudo, no seu tempo, os restos do antigo castelo, de que é bem conhecida a gravura de Jorge Brau Agrippinensis, de 1572; por isso, mais adiante, ao responder ao quesito 27º, «e tudo o mais que houver digno de memória», não se esquece de o referir:

«Nesta freguesia há um castelo, cujo hoje está cheio de moradores e para nada serve mais; porém, ainda se lhe conservam algumas ameias, cujo fica para a banda da Ribeira, pegado com os palácios dos Marqueses de Cascais».

Poderia, naturalmente, não se ter apercebido das paredes subsistentes ao cimo da actual Rua Marques Leal Pancada, já então integradas nas construções; e refere-se, portanto, às que hoje vemos até metade dessa rua, com a respectiva porta.

A Cidadela na descrição do senhor prior

Aproveita, pois, o Padre Marçal da Silveira essa resposta para fazer miúda descrição da Cidadela, referindo, antes, a existência de uma «praça de armas com um regimento de infantaria e seus cabos majores», assim como da Fortaleza de Nossa Senhora da Luz, erguida no tempo do Senhor Rei D. Manuel e que, com o terramoto, muitas ruínas sofreu «em todas as obras interiores e quartéis, não sentindo nas suas muralhas e batarias ruína alguma».

A sua atenção vai, de facto, para a Cidadela, mandada fazer por el-rei D. João IV. Trata-se, como se sabe, de uma das fortificações que este rei deliberou erguer por toda a costa desde as faldas da Serra de Sintra, no intuito de defender Lisboa de mais uma arremetida espanhola, uma vez que fora precisamente por aí, perto da Guia, que as tropas de Filipe II haviam penetrado em território nacional.

O que não deixa de ser curioso é verificar que o prior assinala ter sido essa Cidadela «mística com a dita fortaleza» de Nª Srª da Luz, explicando que tem uma bataria sobre a ribeira, sendo, pois, de servidão para a fortaleza; que pega com suas muralhas outra bataria para a parte do mar e se estende, pela parte de terra, até perto da ermida de S. Sebastião, vindo a fechar «com a porta para defronte da igreja matriz desta freguesia de que sou reitor». «Mística» – a leitura do manuscrito parece, de facto, estar correcta – terá, por conseguinte, o significado de «unida», «bem arrumada», «bom complemento». Uma completava bem a outra.

Tem a Cidadela mais de 30 peças cavalgadas de bronze e de ferro e muitas mais que não estão cavalgadas por falta de reparos. ‘Cavalgadas’ quer dizer montadas no seu suporte. Refere depois que tinha um hospital e uma cisterna própria, assim como a cisterna grande, no meio da praça, «fundada em nove colunas».

Esta cisterna foi completamente limpa e restaurada ao tempo do Coronel Loureiro dos Santos, comandante do aquartelamento de 1978 a 1980, transformando-a em mui bonita e acolhedora Sala de Armas, em jeito de pequeno museu de artilharia, porque tinha, por exemplo, os galhardetes dos destacamentos de artilharia portugueses, a imagem de Santa Bárbara e, ao descer a escada de acesso, tínhamos pela frente a imagem de Santo António, réplica da que acompanhara o cascalense Regimento 19 de Infantaria que bravamente combateu, sob sua protecção, na batalha do Buçaco. Aí se chegaram, pois, a realizar iniciativas de índole cultural, na medida em que o ambiente para tal era deveras propício. Na actualidade, a cisterna está afecta à pousada e deixou, por isso, de poder estar habitualmente ao serviço da comunidade.

Não se esqueceu o prior de um pormenor que sempre suscita curiosidade aos visitantes: os nomes dos quartos dos soldados – S. António, S. Catarina, S. Luís, S. Pedro. As placas identificativas mantêm-se e, no aproveitamento hoteleiro que a Cidadela teve, continuam a ser quartos. Ao todo, seriam 88 ‘quartéis’, que o terramoto destruiu – conta o reverendo. Com ele caíram também quase todas as guaritas.

Dois outros pormenores, com que termina a descrição, merecem destaque:

«Tem seus fossos, ainda que não podem receber água do mar. A referida Cidadela, do cordão para cima, está ainda imperfeita, pois lhe faltam os parapeitos em a altura necessária e as canhoeiras segundo a arte da Arquitectura Militar».

Dá, pois, impressão de que a ideia original seria que a água do mar pudesse entrar pelos fossos que rodeiam as muralhas, criando assim mais um elemento de defesa. Quanto à ‘imperfeição’ do amuralhado, louve-se a perspicácia do prior.

Da inexistência de ‘muros’ passámos, por conseguinte, para a apreciação de um dos monumentos mais emblemáticos de Cascais, a sua Cidadela. Plena de história ela está, mormente por os seus militares terem desempenhado importante papel ao longo dos séculos, não tendo sido de menor monta o contributo dado para a Revolução de Abril.

A sua história está feita. «A Cidadela de Cascais (Pedras, Homens e Armas», do Coronel António José Pereira da Costa, livro publicado pela Direcção de Documentação e História Militar (Estado-Maior do Exército) constitui, sem dúvida, a mais completa síntese acerca dos mais de 360 anos de vida da fortaleza.

Morreu? Não! Entregue, de certo modo, à população, ainda que concessionada na sua exploração económica, recebe amistosamente quantos nela desejem passar uns bons momentos, passear-se pelas muralhas, dali admirar o oceano, saborear um acepipe ou ler um livro. O que foi a parada continua a ser mui agradável sala de estar e há espaço bastante para se manter o distanciamento social. A capela de Nossa Senhora da Vitória abre de vez em quando; o Museu da Presidência merece uma visita.

E se, assim que se entra, vemos as antigas bombas de gasolina que abasteciam as viaturas militares, essas mesmas bombas, assim solitárias de um passado glorioso, clamam a necessidade de, num recanto qualquer, por ali, alguém se lembre de preparar uma exposição, por pequena que seja, evocativa desse passado. Quisemos, em devido tempo, que isso fosse condição sine qua non para quem pegasse no empreendimento. A nossa voz não foi suficientemente forte para se ouvir. Pode ser que, um dia destes, quando a História vier a ser mais prezada, esse recanto de história venha a ser realidade. Se na cisterna sob a parada era, não tenho dúvidas, oiro sobre azul!

2 COMENTÁRIOS

  1. Este é um admirável e rico texto de José d´Encarnação sobre “os muros de Cascais” que o Padre Marçal da Silveira dizia não existirem. Mas no seu rigor habitual o autor explica o significado das palavras do padre na resposta ao inquérito distribuído pelos párocos depois do Terramoto de 1755…
    Aprendi muito, como sempre, sobre a História local. E a expressão “ainda hoje nos sentimos ‘medievais’ ao percorrer essa teia de ruelas…”, dá bem ideia do que sente o caminhante que queira descobrir, ou sentir de novo, o coração da vila.
    O castelo, com seus moradores, e a Cidadela, emblemáticos. E da última, onde tantas vezes passeamos, ou saboreamos um petisco e uma bebida, recolhemos agora pormenores que nos ajudarão a uma apreciação diferente. Muito grata.

  2. Só hoje vi, li, e evidentemente apreciei mais uma preciosa achega para a história de Cascais.
    Também lamento muito não haver na pousada ou em alguma sala uma exposição sobre a história da Cidadela …é lamentável que quem vá usufruir das instalações hoteleiras não tenha uma explicação da história e antiguidade daquele monumento.
    Lamentável é também o desleixo a que estão votadas as muralhas exteriores do antigo aquartelamento…tudo ali nasce e vai rebentando com essas vetustas paredes. A quem cabe a manutenção do exterior da fortaleza?

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