Nesta história, há um juiz que gosta de levar um andor na procissão anual da sua terra. É devoto da Santa e da vila que o viu nascer. O juiz gosta de dar entrevistas em grande às televisões e outros chamados órgãos de comunicação. Tem uma pose que revela alguma vaidade e faz afirmações que nos levam a crer que estamos perante um viciado em trabalho, em elaborar acusações e até a fazer comentários sobre os seus processos, do género: “ não tenho amigos ricos que me paguem as contas”. No entanto, soube-se que pediu um empréstimo para as obras na sua casa a um amigo procurador que, por azar dos Távora, foi pronunciado num processo de corrupção.
Há muitos anos, desde o reinado de Salazar, que por cá se valoriza o trabalho, a pobreza e o espírito abnegado. Precisávamos de um justiceiro, um acusador do regime onde os amigos, os grupos, os que estão nos bastidores a governar a vidinha, pudessem ir para o Inferno.
Fazendo inspiração na voz popular, onde tudo o que brilha nos outros é ladroagem, o juiz construiu uma história perfeita no enredo, mas que por vezes entrou no sonho pesado de que um primeiro-ministro podia ser protagonista. Um sucesso brutal nas audiências! Quando um ex-governante passa a viver como um novo-rico, com tiques de pato bravo urbano, é normal levantar desconfianças. Férias a cem mil euros, jantares caros, ténis de 500 paus, chauffeur de pistola ilegal, fatos comprados na baixa de Los Angeles, carros topo de gama, apartamentos palacianos…são vícios estranhos de quem apregoava bicicletas para os cidadãos, computadores de brincar para os alunos, aeroportos faraónicos ou TGV para um país onde um terço dos reformados é pobre.
Na sequência do filme, o homem do argumento mandou prender o fugitivo que entrava no país, acusado por um crime em que mais tarde foi declarado inocente, embora tenha tornado famoso o 33 da suite da prisão de Évora. O homem do argumento, também realizador, mandou prender para investigar, e por pouco não ia julgar os seus próprios actos acusatórios.
Entretanto no Ticão, um super tribunal de instrução criminal com dois juízes apenas, acontece que cada um pensa de forma diferente, com a particular perversão de se odiarem. Um é da província e gosta de ser duro, implacável, indo se puder além das funções, o outro é urbano, pós-moderno, começando nos óculos de estilo e design moderno. E acha que as leis não podem perverter direitos dos acusados. Podemos dizer que o primeiro juiz é um sistema Windows o outro é um sistema IOS. Um complica e faz grandes acusações em processos de 7 mil páginas, o outro simplifica e faz da montanha de páginas um documento minimalista mas, onde as acusações aceites já davam para uma longa estadia na prisão.
Só que, a vingança, ou a fraqueza de quem é rejeitado demasiadas vezes pelos outros juízes superiores, deixaram assistir a um festival de adjetivação como nunca se tinha visto numa leitura de um acórdão, por parte de um juiz.
O Marquês lá do alto, olhando Lisboa, compreende bem esta série Netflix. Também ele foi acusado e a Rainha veio em seu socorro. Mas o que os leitores nunca irão compreender é como foi possível termos aqui chegado, dezenas de anos após o 25 de Abril da Justiça e da igualdade. A Justiça está agora presa numa enorme teia de vaidades e interesses corporativos, e os dois mais altos responsáveis da Nação meteram a cabeça na areia, e acham que nada disto tem a ver com política, mas tão, e só, com uma novela para entretenimento dos votantes totós.