Confissão e arrependimento

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À conversa… Rita (nome fictício) disse-me que ainda se emocionava quando via uma criança pequena a brincar. Ninguém a tinha preparado para a dor emocional resultante de um… da interrupção de uma gravidez. Suspirou, nem conseguia dizer a palavra aborto. Pudera, esta caracterizava tão bem o verdadeiro problema. Algo que era bom, lindo e cheio de vida, uma promessa de felicidade, fora interrompido e tornado numa coisa, aberrante, sem beleza e… morto.

Afinal, quem andava a mentir às mulheres? Ao falar com outras que tinham passado pelo mesmo, apercebera-se de que todas, sem exceção, sentiam que haviam perdido algo de insubstituível. Algumas tinham falado, inicialmente com desprendimento, mas, quando ela admitira a sua dor, concordaram com ela inesperadamente.  Mesmo aquelas que já tinham outros filhos, partilhavam este sentimento de perda. Nenhum filho tinha substituído aquele, que nunca chegaram a conhecer.

Ninguém a alertara para este aspeto, nem para a dor emocional em que se vira embrenhada após ter realizado a… interrupção… Também esta palavra se tornara odiosa. Todas as atenções tinham ido para o ato cirúrgico em si, ou lá como se lhe quisesse chamar. Do ponto de vista físico, tinha sido relativamente simples, mesmo se matizado pelo sentimento de culpa por estar a fazer algo de errado e acrescido pelo facto de ser feito às escondidas, mesmo se em boas condições.

Na sua opinião, era exatamente aqui que residia o problema. O assunto tinha sido habilmente resumido à sua dimensão física quando esta era, afinal, o aspeto de menor importância. O que estava em causa não era algo material, mas sim um ser e, por isso, qualquer abordagem segundo parâmetros meramente físicos, era incompleta, inadequada, insuficiente e deficiente. Era assim que se sentia, deficiente na sua personalidade e na sua capacidade de avaliar, inadequada no seu desempenho enquanto mulher e mãe, insuficiente na sua capacidade de amar e no seu grau de responsabilidade.

Hoje achava que o que fizera tinha sido de um egoísmo atroz. Sentia que tinha sido enganada pois, como paciente, tinha o direito de ter sido informada de todas as consequências do que iria fazer. Físicas, psicológicas e emocionais. Mas… hesitou. A realidade era que, em última análise, e responsabilidade tinha sido sua e se tivesse querido mais informações devia ter pedido e, se necessário, até as podia ter exigido. Ao admitir isto apercebeu-se de que, na verdade, não quisera ouvir ninguém. Agora, por incrível que pudesse parecer, estas palavras restituíam-lhe alguma calma. Afinal tinha sido menos vítima do que pensara. A decisão tinha sido sua e na altura parecera-lhe que era correta. Apontar o dedo aos outros, só deixara os outro quatro a apontar para si própria!

Mais aliviada, virou-se para mim e disse: “Mas que cultura é que estamos a construir? Não queremos ter um filho porque interfere demais com a nossa vida. Dá trabalho, rouba-nos tempo, altera os nossos planos e implica mais despesas. E sei lá, é um grande comprometimento trazer uma criança ao mundo nos dias de hoje, com tanto droga, criminalidade e… na altura não estava segura se seria boa mãe e se ele teria sucesso na vida ou se seria feliz. Cada vez o prazer vem mais do que é material, previsível e descartável. Nunca tivemos tanto tempo de lazer, tantas diversões e oportunidades. E, pelos vistos, isto só nos tornou mais egoístas. Se estamos perante algo que nos pode dar prazer ou ser importante, comparamo-lo logo com a quantidade de trabalho que nos vai dar, com o espaço que nos vai tirar e com o tempo que nos vai roubar. Pensamos na nossa querida vidinha e se o compromisso que estamos a pensar em assumir, representa a potencial invasão da nossa tão estimada privacidade ou a sua destruição”. Mas que maneira de viver a vida!” disse Rita à laia de conclusão e acrescentou: “Fez-me bem falar contigo.”  Respondi: “E eu ouvir-te”. Sorrimos, satisfeitas com este momento de partilha e de cumplicidade. Sentíamo-nos mais vivas neste belo fim de tarde.

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