Portugal Novo

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Portugal Novo é o nome de uma cooperativa de habitação económica que construiu centenas de apartamentos no Areeiro, em Lisboa. O regime salazarista tinha deixado Portugal cheio de bairros da lata e a seguir à revolução de 1974 as cooperativas de habitação deram um fortíssimo contributo para acabar com essa indignidade. A maior parte dos casos são histórias felizes, mas não a da Cooperativa Portugal Novo.

A falência da cooperativa e o que isso significou para a vida das pessoas que moram na urbanização foi contada numa reportagem da jornalista Maria José Garrido que a TVI exibiu (link) no passado dia 25 de março.

Uma reportagem surpreendente, principalmente porque acontece num local onde não se imaginaria que uma história assim estivesse a ser vivida. A autora da reportagem falou connosco e contou-nos outros pormenores que escaparam à reportagem.

Há quanto tempo conhecias aquela realidade? Quem te chamou a atenção para ela?

​Em maio / junho do ano passado, em plena crise pandémica, realizei uma grande reportagem sobre o acolhimento no Pavilhão do Casal Vistoso, no Areeiro ( deixo aqui o link: “Bem-vindos ao Casal Vistoso”: a outra face da insegurança no Areeiro | TVI24 (iol.pt) ​Os vizinhos em redor do pavilhão estavam descontentes com o acolhimento que a Câmara de Lisboa estava a dar aos sem abrigo e às pessoas que tinham ficado sem teto por causa da pandemia. Acusavam as pessoas aqui acolhidas de serem responsáveis pela onda de assaltos que assolava a freguesia, diziam que estavam a criar um novo Casal Ventoso pois eram muitos os toxicodependentes que ali eram acolhidos. Havia de facto toxicodependentes entre os acolhidos no Pavilhão. Por isso mesmo a Câmara garantia a que as carrinhas da metadona e do consumo assistido ali passavam diariamente para dar apoio. Durante esta reportagem no pavilhão, várias pessoas falaram-me do bairro Portugal Novo, o bairro azul que estava ali perto. Durante a reportagem do Casal Vistoso tive também ocasião de filmar pessoas a injetarem-se a céu aberto num jardim ali perto (algo que não via desde os tempos do Casal Ventoso, centro da droga em Lisboa nos anos 90). Mais uma vez falei do assunto a pessoas durante a reportagem sobre o acolhimento no Casal Vistoso, e disseram-me que o bairro azul era um dos pontos de tráfico de droga em Lisboa. Comecei então a interessar-me pela história do bairro Portugal Novo e foi quando descobri que a história ia muito para além do tráfico de droga. Aliás , verifiquei que a questão do tráfico de droga era marginal na história. O fulcro da questão era mesmo o abandono a que estava votado o bairro.  

(fotograma do vídeo da reportagem da TVI)

– Foi fácil entrar ali e fazer a reportagem? Houve alguma recusa dos moradores? Alguém não aceitou falar contigo?

​Não foi fácil entrar no bairro. Primeiro estive lá com uma das pessoas ligada aos Vizinhos do Areeiro (os Vizinhos do Areeiro tinham feito uma petição reclamando a municipalização do bairro). Descobri que havia várias associações/organizações não governamentais a dar apoio aos habitantes do bairro. E foi através delas que consegui entrar no bairro e contactar os moradores. Também falei com Associação de moradores (AMPAC) mas não consegui que me respondessem afirmativamente. Foram sempre adiando a possibilidade de entrar no bairro. Consegui entrar no bairro através da AMI.  Objetivamente ninguém se recusou a falar com a TVI, mas sentimos alguma agressividade sobretudo por parte das pessoas que estavam ligadas ao tráfico de droga. Havia vigilantes que, assim que nos viam com a câmara de filmar, perguntavam onde íamos e o que estávamos a fazer. Umas pessoas num carro fizeram tenção de atropelar um colega meu que estava a fazer filmagens com a gimbal (câmara que permite fazer filmagens em movimento sem tremer). Ainda estivemos à conversa com eles a explicar o que estávamos a fazer.  Procurámos sempre explicar o que estávamos a fazer, sem mentir e sobretudo não quisemos entrar com câmaras ocultas. Quisemos que nos vissem a filmar porque seria importante para ganhar a confiança dos moradores. Uma vez no bairro e uma vez dadas as explicações sobre o que estávamos a fazer conseguimos falar e sinceramente, à parte o tráfico de droga (que é um caso para a polícia), não me parece que o bairro seja perigoso. 

(fotograma do vídeo da reportagem da TVI)

– Aparentemente o dominador comum é a pobreza, mas consegues caracterizar a população do bairro? Que profissões existem? Quantas etnias e nacionalidades coexistem ali?

Tal como disse Margarida Mendes da AMI, hoje em dia não se sabe quem vive no bairro. Eu própria digo que a população já não é a de origem. As casas têm sido passadas, ocupadas ou vendidas. A AMI está lá desde o início do bairro e diz que não é possível caracterizar a população. Sabe-se que a maioria já não é a original.  O mural do bairro dá indicação que há “brancos”, ciganos, africanos e indianos. Na verdade, do que se sabe os africanos e indianos estão maioritariamente nos prédios da Gebalis em redor do bairro. Não vivem nos prédios azuis mas sim nos prédios de gestão da Câmara de Lisboa- Gebalis. 

– Na reportagem dizes que é um bairro seguro, o que desmente a fama que o bairro tem? Como explicas essa contradição?

​A fama do bairro tem a ver com um homicídio que houve em tempos. Foi dito que mataram o homem para ocuparem a casa. O que me dizem é que terá sido uma namorada do senhor a assassiná-lo. A casa depois foi passada/vendida a uma pessoa de origem africana. Mais uma vez, a reportagem da TVI queria sobretudo focar-se na situação kafquiana do bairro sem gestão há quase 40 anos. Por isso, não investiguei o crime até porque era apenas um crime em quase 40 anos. O tráfico de droga é evidente assim que lá se entra, mas, mais uma vez, é um caso de polícia. O que se verifica também é que essa não é uma questão especifica daquele bairro. Há muitos outros bairros em Lisboa onde o tráfico existe e nem por isso se diz que são bairros perigosos.  É o caso deste. Passando ao lado da droga ninguém se mete com ninguém. Daí vermos pessoas idosas que se mantêm no Portugal Novo sem qualquer problema. Importante mesmo era resolverem a gestão do bairro. Câmara e Governo chegaram finalmente a acordo. Não sei quanto tempo mais vai demorar a resolução do problema.

– Aqueles terrenos valem uma fortuna para os construtores civis. Achas que isso condicionou de algum modo as intenções de reabilitar o bairro? Haverá ali uma política de terra queimada para depois se dizer que é inevitável deitar abaixo, desalojar as pessoas e erguer mais um projeto imobiliário para vistos gold?

A Câmara de Lisboa parece-me estar com as melhores intenções. Não me parece que queiram dificultar a reabilitação do bairro. Julgo que estão empenhados. Mas o problema é de facto complicado de resolver: porque já não há cooperativa de habitação, porque há uma enorme dívida (não se sabe ao certo de quanto), porque há responsabilidades da administração central que nunca quis saber do bairro e porque, entretanto, os moradores já não são os mesmos- há propriedades transferidas e há ocupações. Vai ser difícil resolver a situação do bairro, mas do que percebi da vereadora da habitação, Paula Marques,  há uma grande vontade em resolver sem retirar os moradores do local.  

Os problemas sociais deste bairro derivam de fatores comuns a todos os lugares abandonados, postos à margem, onde as traficâncias se desenrolam sem interferências. Extraordinário é isto acontecer no centro de Lisboa. Há décadas que o governo da cidade anda a fingir que o Portugal Novo não existe. E não existe mesmo, porque este é o Portugal de antigamente, do tempo da “outra senhora”.

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