Não sei bem quando comecei a reparar nele. Tinha uma figura alta, magra, barba bem feita, cigarro na mão, bem agasalhado, com roupas gastas. E estava sempre sentado no degrau de uma loja da Elie Saab. Não era um sem abrigo, não pedia nada, não fazia nada. Só olhava. Olhava para mim no início da rua e baixava os olhos quando passava por ele. Um dia disse “bom dia!” e ele respondeu, surpreendido. Foram semanas de bom dia e às vezes “boa tarde”. Ele desaparecia ao sol posto e voltava na manhã seguinte, pelas 10h. Umas semanas depois, a conversa disparou!
– “Então ontem faltou?”
– “Não! Estive noutro escritório.”
– “E hoje veio mais tarde e já vai almoçar?”
– “Então, já vai embora?”
– “Amanhã não venho. Vai estar a chover.”
– “Não mora aqui?”
Sem família, morava num quarto alugado em Campolide mas gostava de ir a pé todos os dias até Picoas, junto da maternidade onde nasceu. Não me lembro do nome dele. Só sei que tinha a idade do meu pai. Perguntava-lhe, meio a sério, meio a brincar, se queria vir almoçar comigo. Mas ele dizia que almoçava no “morte lenta”, como chamávamos ao modesto restaurante em frente. Um dia vou à “morte lenta” e digo ao Senhor João que quero passar a pagar os almoços daquele Senhor e aponto para a esquina. “Não é preciso. Ele não paga. Não se preocupe. Só lhe peço que venha mais tarde, depois de servir os clientes habituais.”
Muitas vezes tive a estranha sensação de ver na cara dele a satisfação de “missão cumprida” como se ele pensasse “já a vi, já a cumprimentei. O dia está feito”.
Um dia chego mais tarde e, ainda a 50 metros, já ele está em posição de falar, quase a apontar-me o dedo!
– “Estava aqui à sua espera para lhe dizer uma coisa que a vai surpreender!”
– “O quê?”
– “É que eu hoje faço anos!”
– “Mau! Não me diga que quer um presente!”
– “Não peço, mas se me quiser dar, eu aceito. Afinal faço anos!”
– “Muito bem. Tome lá dinheiro e escolha o seu presente.”
– “Muito obrigado. Tenho razão ou não tenho? Faço anos, tenho direito!”Todo contente, saiu vitorioso da sua investida!
– “Sim senhor… muito bem… Só não sabe é com quem se meteu. É que eu também faço anos hoje, e agora?”
Ele ficou sem palavras! Saca da nota e faz o gesto para a devolver…eu disse que não queria. O meu presente era comermos uma fatia de bolo e um brinde juntos. E assim foi.
Será que ele se vai lembrar de mim hoje?
Parabéns a quem vive parado na esquina, à espera que não chova.