A propósito do pequeno templo mandado erigir, na Beja romana, por Júlia Saturnina, à esposa de Fauno, a Boa Deusa, acabei por mostrar a imagem de um Fauno, gravada num anel de cornalina exumado por ocasião das escavações arqueológicas levadas a cabo, em 2001, na villa romana identificada em Caparide (S. Domingos de Rana, Cascais). E dei comigo a pensar: será que o romano (ou a romana) que usaram esse anel teriam consciencializado, um dia, que tinham um fauno na mão?
É, na verdade, motivo decorativo esteticamente agradável à vista (Fig. 1): de pé, dorso arqueado, orelhas compridas, cabelo hirsuto, cauda longa, o fauno ergue nos braços a flauta cujo clangor vai enfeitiçar os humanos… Mas qual a razão da escolha? Estética apenas? Tendo, mui provavelmente, hipótese de escolher a compra, que razão terá induzido a esta preferência e não a outra?

Mexemos diariamente em moedas. Porventura agora já não ligamos muita importância àquilo que nos entusiasmou no início da era do euro: «Donde é que é esta? Que monumento será este? E este senhor quem é?». E até pensámos em coleccionar moedas de todos os países da União Europeia, porque… era giro conhecer as diferenças! Toda a gente sabe já que, no verso da moeda portuguesa de um euro está representado o selo real de 1144, de el-rei D. Afonso Henriques. Talvez se não tenha reflectido, porém, sobre qual a razão dessa escolha, quando, por exemplo, o euro alemão tem a monumental e bem simbólica Porta de Brandemburgo. Parece, na realidade, algo de estranho, esteticamente pouco convidativo ao olhar… Houve, contudo, uma razão: desde 1143 que Portugal é independente! E a Espanha só no princípio do século XVI, por acção dos Reis Católicos, é que logrou a união dos reinos em que, até aí, estivera dividida. E a Itália nos finais do século XIX, depois das lutas de Garibáldi! Isto é: assim se mostra aos demais que, quando eles nasceram, já Portugal existia!…
Por isso também, quando identificámos na villa romana de Freiria (S. Domingos de Rana, Cascais) uma estranha moeda e a limpámos, depressa compreendemos que a legenda IMP ‧ SAL queria dizer IMP(eratoria) SAL(acia) e tinha todo o sentido nela estarem representados dois golfinhos e, do outro lado, o busto de Neptuno, deus do mar, com o seu tridente (Fig. 2). Os habitantes da Alcácer do Sal de então quiseram plasmar na moeda o nome da sua terra, de que se orgulhavam. Não era qualquer uma que se poderia gloriar de ser imperatoria, ou seja, directamente ligada a um imperator, um chefe militar de excelência, nesse ano 44 antes de Cristo!

Voltando ao anel. Sim, o romano que o ofereceu à sua amada com a imagem de um sátiro poderia ter um segundo sentido, o de assim melhor a seduzir. Mas, ao usá-lo no dedo, que significado tinha o fauno para a senhora? Claro, também se poderia pensar que era um portador e não uma portadora. Nesse caso, será que almejava identificar-se com a sedução de Fauno, vagueando pelos bosques à espreita de mui descuidadas Ninfas esbeltas?
A questão permite-nos entrar no complexo e sempre misterioso mundo da Arqueologia. Não há textos nos guiem. Imaginamos o que terá acontecido, com base nos dados concretos encontrados, mas não temos garantia de que assim tenha acontecido, porque, em relação aos Romanos, dois mil anos passaram já, as mentalidades evoluíram e o que se nos afigura evidente pode não ter sido assim nessa altura. Em todo o caso, algo pode concluir-se desde logo: não era qualquer um que poderia dar-se ao luxo de ter anel com pedra de cornalina! E, por outro lado, a gravação da imagem de um fauno implicava conhecimentos da mitologia!…
Demos mais dois exemplos.
O auriga
Achou-se na villa romana de Freiria uma outra pedra de anel, esta de ónix, que representa um auriga a conduzir uma biga (Fig. 3). ¿Recorda-se o leitor de já ter visto, em hipódromos, corridas de cavalos em que o cavaleiro, em vez de estar montado no dorso, conduzia, sentado, um carro de duas rodas puxado por dois cavalos? Isso era uma biga, no tempo dos Romanos; e ao cavaleiro dava-se o nome de auriga. Ora, para além do aspecto estético – que nunca deve esquecer-se como razão da escolha – que poderiam os arqueólogos elucubrar perante tão curioso achado? Corridas de cavalos? Seria cavaleiro o portador do anel? E porque não?

Claro, arqueólogo que se preza carece de justificar o melhor possível a hipótese de explicação apresentada. Ora, neste caso, como sói dizer-se, «estava-se mesmo a ver»!… Em Lisboa – a romana Olisipo – topara-se, não havia muito, aquando das obras de alargamento do metro, o hipódromo romano na zona do actual Rossio. Portanto, lugar para as corridas havia e não longe, embora também o hipódromo de Mirobriga, perto de Santiago do Cacém, não ficasse muito fora de mão… E, por outro lado, não correra mundo, pelos séculos fora, a lenda (lenda poderia não ser, afinal!…) de que as éguas da Lusitânia eram fecundadas pelo Vento e, daí, serem as mais velozes do mundo? Havia, pois, todos os ingredientes para os arqueólogos sonharem com a possibilidade de, em algum tempo, o proprietário da villa de Freiria se adestrara no manuseio das rédeas para ser triunfador! Então não é que ele empunha mesmo um ramo de louro, símbolo evidente da vitória alcançada!…
A deusa Diana
O exemplo seguinte não é tão faustoso do ponto de vista estético. Não se trata do uso de uma pedra semipreciosa, mas de mui singelo objecto de barro: uma lucerna.
Lucerna era o nome que os Romanos davam ao que nós, hoje, chamaríamos, mais lhanamente, lamparina. Consta de uma pega, do disco onde se punha o combustível (azeite ou óleo) e do bico, por onde saía a torcida. Tudo muito simples, utilitário, para o dia-a-dia, portanto.

Pois o caso é que não seria bem assim. Essa função de alumiar, de concreta passou a ter também um significado maior, quase místico, dir-se-ia! Não será, por isso, de admirar que, num santuário como o de Santa Bárbara de Padrões, em Castro Verde, dedicado a uma ou várias divindades, a oferta devota fosse precisamente uma lucerna. Doutra forma se não entenderia o facto de aí se haverem encontrado às dezenas (Fig. 4). Ora também por esse motivo, por essoutro significado, é que a parte superior do disco passou a ser decorada com as mais variadas cenas e imagens.
Uma das lucernas encontradas na villa romana de Freiria tem representada no disco a deusa Diana, divindade que, como se sabe, superintendia às actividades venatórias (Fig. 5).

Significava essa representação que o seu proprietário fosse caçador? Não necessariamente.
Primeiro, porque a lucerna era feita com um molde e, embora se não conhecesse o fabrico em série, o normal seria que o oleiro as fizesse logo em quantidade, enquanto estava ‘com as mãos na massa’, digamos assim. Depois, porque uma pessoa pode gostar de uma imagem só por meras razões estéticas; a caça era, de facto, uma actividade a que, por necessidade e por prazer, os Romanos se dedicavam, como o demonstram também as movimentadas cenas de caçadas plasmadas em policromos mosaicos que pavimentam as salas nobres das suas casas de campo (as villae); mas isso não implica acalorada devoção à deusa.
Por conseguinte, para o arqueólogo, a presença dessa decoração vale não expressamente como testemunho de um culto mas de uma cultura a que se aderiu.
E torna-se, por isso, bem aliciante pensar que – no dedo de uma matrona romana ou de mui distinto proprietário rural – aquele fauno no anel mais não seria, afinal, do que excelente pretexto para, mostrando-o, proporcionar uma conversa… brejeira!…
Um texto soberbo, uma viagem pela Arqueologia na interpretação de fortes símbolos imagéticos. Tudo a partir do anel de cornalina com um fauno, na mitologia romana o deus guardador dos pastores (acho eu..) meio humano, meio bode, encontrado numas escavações de Caparide.
Mas atenção: o fauno seria antes de tudo um rei depois transformado em deus. E José d´Encarnação interroga-se quem (homem, mulher) e porquê, teria usado um anel com um fauno. Ele, para mostrar a sua virilidade? Ela, à espera do rei e senhor dos seus sentimentos? Outros achados não provocam tantas interrogações. A pedra de anel em ónix encontrada nas escavações de Freiria, representando uma biga conduzida pelo seu auriga, talvez fosse, na opinião de José d´Encarnação, propriedade de algum senhor que ali treinava paras as corridas no hipódromo de Olisipo (sob o Rossio). Um tal anel justificava-se no dedo de um auriga…
Ou a importância das moedas que numa das faces apresentavam os golfinhos, na outra o busto do Neptuno rei dos mares, e com honrosa inscrição de imperatoria Salacia.
No fundo é divagar à volta da simbologia da imagem nos artefactos encontrados, simbologia essa funcionando como espelho de uma cultura. Tal a deusa Diana numa lucerna que, aparentando ser uma simples lamparina de uso doméstico, era elevada à importância máxima de dar a luz, que nos tempos antigos sempre teve forte conotação com poder e importância.
Quanto se aprende com um texto destes! Por isso gosto tanto de ler José d´Encarnação.