A advogada Marta Pinheiro presta serviços nas áreas de Direito Criminal e Familiar, preferencialmente. O caso do desvio das vacinas contra o covid-19 alastrou por todo o país, há centenas de evidências e de implicados nesse desvio. A situação já levou à demissão de dois altos responsáveis da área da saúde em Portugal.
Pergunta: À luz da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, como comenta as declarações de Francisco Ramos, responsável do Plano Nacional de Vacinação, segundo o qual não faria sentido privar da segunda dose da vacina quem recebeu a primeira, ainda que sem merecer?
Resposta: Considerando que as vacinas, no mercado, requerem duas tomas, não fará muito sentido perder-se o efeito da primeira toma de quem as toma indevidamente, porque se assim fosse o prejuízo seria maior, pois à conta de tais pessoas gastar-se-iam três vacinas.
O Ministério Público diz ter aberto averiguações sobre os casos divulgados pela comunicação social. Como se processam essas averiguações?
As averiguações realizadas pelo Ministério Público correspondem à fase de inquérito (investigação) auxiliados pelas forças policiais. Nesta fase analisa-se os documentos, ouvem-se testemunhas e tudo o demais necessário para averiguar da existência ou não de crime, e constituem-se como arguidos os indivíduos suspeitos da prática do crime (passando assim a ter direitos e deveres, no processo); caso se conclua pela existência de um crime, o Ministério Público elabora a competente acusação.
O que será necessário acontecer para que alguém seja constituído arguido e, eventualmente, condenado? Que crimes seriam esses?
A constituição de arguido depende de o indivíduo ser considerado suspeito ou não da prática do crime; com a constituição de arguido, passa a ter direitos e deveres, um dos quais é o de não prestar declarações, e o seu silêncio não o pode prejudicar. Poder-se-á falar do crime de burla ou de peculato, caso estejamos perante um particular ou de um funcionário público. No primeiro caso falamos de burla (que depende de queixa e tem uma moldura penal até três anos de prisão), no segundo de peculato (uma moldura penal até oito anos de prisão). Em casos extremos, se ficar provado que quem tomou a vacina indevidamente, veio a provocar que um terceiro falecesse, por não ter tomado a vacina, aqui poder-se-ia falar em homicídio negligente.
À luz da legislação, este tipo de irregularidades ou crimes podem de facto levar a prisão efectiva ou apenas pena suspensa?
O crime de burla permite a aplicação de uma pena de multa ou de prisão; no caso do crime de peculato apenas existe a possibilidade de pena de prisão de 1 a 8 anos. No caso de prisão, o Juiz pode ainda suspendê-la na sua execução, durante determinado período de tempo, se nesse período, os condenados praticaram novos crimes poderão ter que cumprir a prisão efetiva. Mas só as penas até 5 anos podem ser suspensas na sua execução.
No que diz respeito às leis que regulamentam o exercício de funções públicas, se ficar provado que alguém cometeu irregularidades graves, pode ser impedido/a de voltar a exercer funções para o Estado?
Na função pública, além de haver o processo crime poderá (e deverá) haver o processo disciplinar, que tem como sanção máxima o afastamento das funções naquele cargo.
Quando estes casos terminarem, considera que poderá ser feita alguma espécie de jurisprudência?
Os processo crimes entretanto abertos, que irão ter um desfecho, desfecho que acabará de certo nos tribunais superiores (como da Relação e do Tribunal Constitucional),manifestando-se sobre a interpretação das leis, dando assim origem a muitos acórdãos com decisões variadas.