Com papas e bolos… se distribuem vacinas

De acordo com o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, "chico-espertice" é "a condição, dito ou comportamento de chico-esperto". Já este nome designa "que ou quem se acha muito esperto ou mais esperto do que os outros (...) que ou quem age de modo oportunista, e por vezes desonesto, desrespeitando regras em proveito próprio". Serve este parágrafo para tentar começar a contextualização sobre o caso das vacinas mal distribuídas.

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Na passada semana, 126 funcionários do Centro Distrital da Segurança Social de Setúbal foram vacinados. O problema é que alguns deles não faziam parte da lista a quem eram destinadas as vacinas, nem eram considerados prioritários (categoria onde entram, por exemplo, pessoal médico e auxiliar e pessoal que trabalha nos lares de idosos). A polémica levou a que a então directora, Natividade Coelho, pedisse a demissão, a qual foi aceite. Seguem as averiguações como é da norma.

Já em meados de Janeiro, se soube que o autarca de Reguengos de Monsaraz, José Calixto, tinha sido vacinado com o argumento de ser prioritário, uma vez que também é dirigente de uma fundação que possui um lar de idosos; enquanto que o coordenador do plano de vacinação, Fernando Ramos, manifestou dúvidas sobre a legitimidade deste “passar à frente na lista”, a autarquia diz que é “um procedimento normal”. 

Esta segunda-feira, o Ministério Público confirmou que abriu inquéritos que dizem respeito “a alguns dos casos vindos a público, desde logo os respeitantes à Segurança Social de Setúbal, ao INEM de Lisboa e ao INEM do Porto”, numa alusão ao famoso caso das vacinas que sobravam na cidade Invicta e que foram administradas ao pessoal de uma pastelaria bem próxima das instalações portuenses do INEM – no mesmo bairro onde estava uma corporação de bombeiros. O responsável pela delegação Norte do INEM acabou por se demitir no meio da polémica.

A indignação é de tal ordem que existe quem defenda a demissão imediata do coordenador do Plano Nacional de Vacinação Contra a Covid-19, uma vez que Francisco Ramos (o titular do cargo) assegurou em público que quem recebeu a primeira dose ainda que imerecidamente vai receber a segunda. Alegou que outra coisa seria “justiça popular que faria pouco sentido”, insistiu que não é papel dessa estrutura perseguir os “batoteiros” e colocar a segunda toma em causa seria “um espírito vingativo”. “Essa pergunta explica um pouco aqueles 11% ou 12% nas eleições presidenciais do passado domingo, um espírito vingativo que não me parece que seja muito bom para uma sociedade solidária como a nossa”, afirmou Ramos em declarações à SIC Notícias. 

Sem querer entrar em considerações legais ou criminais, que por si só dariam um muito vasto artigo à parte, gostaria de chamar a atenção para o plano moral e filosófico da questão – daí o conceito de “chico-espertice”.

Um fenómeno da psique comum em muitos povos (não se pense que é apenas apanágio dos “atrasados povos do sul da Europa”, como alguns gostam de pensar, porque imoralidade e falta de ética também acontecem nos povos do norte da Europa), a pequena corrupção/chico-espertice é transversal a todas as faixas etárias, sócio-económicas e culturais do País. O problema está na perspectiva pessoal da maioria das pessoas, fruto de vários factores. Ou seja: se forem os outros a fazer, brado contra eles. Tudo uma corja, corruptos, filhos desta e daqueloutra, malandros, cadeia com eles, aproveitadores, etc. Se for eu a fazer, não tive outra escolha, é uma questão de sobrevivência, ou ataco ou sou atacada, e por aí vai. Uma espécie de auto-justificação da corrupção reside no sub-consciente de cada pessoa, com a justificação primaz de que cada um desenrasca-se como pode nesta selvajaria. Os mais cínicos riem-se dos que mais ética têm, designando estes últimos de santinhos ou idiotas. “Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo, ou não sabe da arte”, lá diz o ditado popular, vindo das profundezas da sabedoria do mesmo povo que, com justiça diga-se, grita ainda hoje (sobretudo pelas vias digitais, veículo moderno) contra “a cambada de corruptos e parasitas”. Mas então…? Não é a corrupção um defeito de carácter grave, um crime até, inscrito no Código Penal? Não é a chico-espertice uma característica má, perversa, obscura, injusta, um autêntico atentado ao bem público (a saúde, o desenvolvimento, etc.) e uma vergonha de comportamento, digno do tempo da “outra senhora”? Não somos nós um povo orgulhosamente democrata, que repudia o salazarismo (exceptuando os descontentes com a situação actual que são cada vez mais permeáveis ao flautista de Hamelin que é aquele senhor daquele partido político) e tudo o que de mau isso significa? Não querem os cidadãos um castigo exemplar para esse cancro que são as “cunhas”, os “compadrios”, a “troca de favores” e os “amiguismos”? Então, em que ficamos? 

Parecem surgir duas atitudes essenciais, e pouco habituais nesta frágil democracia que é a nossa (no sentido de exercício de cidadania democrática por parte da pessoa comum, do cidadão/da cidadã de todos os dias) que,  paradoxalmente, são simples de levar a cabo e complicadas de completar: uma educação (ou auto-educação) para a ética cidadã, levada a cabo nos media, nas escolas e nas famílias, onde a mentalidade e prática do chico-espertismo dê lugar à tão aplaudida e desejada meritocracia, e a acção pelos cidadãos para punir quem “sai dos eixos”. Só esta última enfrenta gigantescos desafios, como se pode verificar, por exemplo, pela cada vez menos amplitude de influência e acção da Provedoria de Justiça. Quem já recorreu a ela, autêntico bastião de defesa do Estado de Direito Democrático, sabe que por falta de recursos, que não da vontade, da exemplar equipa que a constitui, não só os processos são demorados, como muitas vezes a conclusão é favorável à causa que a pessoa defendeu, porém, esbarra neste aparelho de Estado das coisas pouco justo e no carácter não-vinculativo do parecer da Provedora, por mais bem feito que esteja. E isto é apenas um de muitos exemplos de como o mais persistente ensejo de cidadania esbarra numa espécie de parede intransponível. 

Devia haver uma vacina contra a corrupção e o chico-espertismo, dirão alguns, grupo no qual estarão, para mal dos seus/nosso pecados, pessoas que, à primeira oportunidade, fariam o mesmo que os criticados protagonistas das infelizes notícias das últimas semanas, alheios à catástrofe que é a mortalidade elevada por esta maldita pandemia, para não falar do desprezo egoísta com que encaram os efeitos a longo prazo deste coronavírus que veio desarranjar tudo para demonstrar que não vamos ficar todos bem. Era bom haver essa vacina, mas esta não cai do céu nem virá de modo sebastianista lá de longe numa manhã de nevoeiro.

Então, em que ficamos?

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