A culpa do vírus e dos males que afligem a sociedade, meu caro André Ventura, não é dos ciganos, nem dos angolanos, nem dos brasileiros, nem sequer dos ucranianos, dos russos, ou dos chineses. A culpa do vírus, e de tudo o resto que anda mal no Reino da Dinamarca, é de todos nós, que andamos a brincar com esta m#rda, como se a natureza fosse um saco de pancada que tem de aguentar os caprichos de uma espécie que decidiu tirar mais do que deve de um planeta minúsculo, que já se percorre de um lado ao outro em menos de um dia. A culpa do vírus é dos engravatados em quem votamos – incluindo o meu caro – que se têm preocupado mais com reeleições – e encher os bolsos – do que em resolver problemas efectivos.
Deixemos de apontar o dedo a quem não tem culpa e a assumir que todos contribuímos para isto. Deixemos de dar ouvidos a quem se tenta aproveitar da situação para ganhar palco. Já chega de Chega.
6 de janeiro de 2021
Este artigo terminaria na linha anterior, se não fossem os acontecimentos que ocorreram no Capitólio da capital norte-americana no dia 6, durante o qual uma multidão – incitada por um dos muitos Andrés Venturas ululantes que pululam por esse mundo – invadiu um espaço, considerado inexpugnável, pela força das armas, gritos, murros e pontapés, vandalizando depois esse mesmo espaço, em nome duma eleição fraudulenta que só ocorreu nas suas mentes. Pelo caminho deixaram cinco mortos, dezenas de feridos (a maioria dos quais agentes da lei) e meia-dúzia de detenções, num contraste grotesco com os protestos Black Lives Matter, no mesmo local, uns meses antes.
Seguiram-se os intermináveis comentários nos media e redes sociais (incluindo este que lêem agora), mas há um tipo de comentário que me merece particular atenção, para não dizer “vómito”, que é a frase “Em Democracia, todos têm direito à sua opinião, incluindo o André Ventura.” Pois bem, esse raciocínio está errado, pelo facto de ignorar a carga de ódio e violência que o discurso de André Ventura – e similares – encerra.
Diz-se que “a liberdade de um acaba onde a de outro começa” e esse princípio é violado vezes sem conta quando um palerma se empoleira numa caixa de sabão e apregoa que um segmento da população devia ser mandado para casa e é culpado de todos os males do mundo, incitando os seus seguidores acéfalos a mandarem essas minorias de volta para a sua terra. Este discurso não pode ser admitido como “igual aos outros” e, portanto, beneficiando do direito de antena que os outros merecem. Este discurso merece prisão, não merece tolerância, porque viola os mais básicos direitos da Humanidade, e é isso que os defensores da “democracia” não entendem.
Liberdade de expressão, sim; desde que essa não incite à violência (física, psicológica, financeira, ou de qualquer outro género), como até um bonobo com Alzheimer entende…
Conta-se que, se colocarmos uma rã numa panela de água a ferver, ela salta para fora. Mas, se a colocarmos numa panela de água fria e ligarmos o lume, ela ficará lá dentro até morrer, porque se foi habituando lentamente ao aumento da temperatura. Não faço ideia se este cenário trágico é real e não tenciono ensaiá-lo. Mas o que os acontecimentos no Capitólio nos mostraram é que estamos todos dentro de uma grande panela e a pele de alguns já se começa a descolar dos ossos, tal é a temperatura a que o caldo já chegou em algumas partes do mundo, nomeadamente do outro lado do Atlântico. Vimos isso em Washington no dia 6, mas também vemos isso diariamente nos debates presidenciais televisivos, durante os quais o Ventura se esforça por angariar votos apelando ao pior que há nos seres humanos, dando lume a sentimentos que enviaram, por exemplo, milhões de judeus para salas de gás há quase um século. Mas o pior de tudo é a inacreditável desculpabilização desse discurso em nome da “liberdade de expressão” e “democracia”. Não, não, não e mil vezes não.
Incitar a população a exercer violência contra grupos dessa mesma população não é “liberdade de expressão”, é crime.
Esse discurso não pode ser permitido e até o Mark Zuckerberg finalmente abriu a pestana e cortou o pio ao Donaldo até ao dia em que abandonar a Casa Branca. Permitir a perpetuação do ódio, em nome da “liberdade de expressão” é ser cúmplice das atrocidades que se cometeram na Alemanha nazi, na Arménia, no Sudão, no Ruanda, no Zimbabwe, na Coreia do Norte, e ficávamos aqui o resto do dia a elencar palcos de violência inenarrável, que começou sempre com discursos que tinham de ser ouvidos em nome da “liberdade de expressão”. Não, não, não e um milhão de vezes não.
Se não quisermos ver os venturitas a assaltarem São Bento com barretes de campinos na cabeça e as caras pintadas de verde e vermelho (e o nariz de amarelo), enquanto tiram selfies com os pés em cima da secretária do António Costa, quiçá de lábios bem encarnados, é melhor que comecemos a cortar o pio dos venturas desta vida.
Já chega de Chega.
Este artigo tem três partes:
[…] Na sequência dos resultados eleitorais de dia 30 de janeiro, republico aqui umas linhas que, em janeiro de 2021, enviei para múltiplos jornais que já tiveram a amabilidade de publicar páginas minhas. Na altura ninguém as publicou, a não ser os amigos do duaslinhas.pt, nestes três artigos: parte 1, parte 2 e parte 3. […]