Ora puxemos pela cabeça, exercício que é sempre melindroso, mas malogradamente necessário. Quando um empreiteiro prefere meter imigrantes cabo-verdianos a alombarem com tijolos porque trabalham mais barato e, eventualmente, aturam condições de trabalho desumanas porque estão ilegais, a culpa desses empregos estarem nas mãos dos ditos cabo-verdianos é deles, ou do empreiteiro? Quando o cinema Londres fechou e se transformou numa loja de artigos baratos, a culpa é dos chineses que a abriram, ou dos que deixaram de lá ir ver o Tom Cruise, para irem antes aos centros comerciais e atestarem a seguir um carrinho de compras com tralha de que não precisam? Quando a Segurança Social se vê à rasca para pagar rendimentos de inserção social, a culpa é do número vestigial de brasileiros e peruanos que eventualmente beneficiam deste rendimento, ou dos donos de empresas que fazem o possível – e impossível – para cortar nas contribuições mensais para a SS, incluindo mover as sedes para paraísos fiscais, dentro ou fora da U.E.? Quando as contas de Mário Centeno nos obrigaram a apertar o cito com impostos mais pesados, a culpa terá sido das lojas dos nepaleses e indianos, que trabalham sem descanso aos sábados, domingos e feriados, ou será também dos bailouts aos bancos, que já somam tantos milhares de milhões, que lhes perdi a conta?
O problema de André Ventura é que apregoa os exemplos anteriores sem os contextualizar e arrasta consigo uma vara de néscios demasiado simples para entenderem que a esmagadora maioria dos problemas que atribuem a uma fracção minoritária da população, são efectivamente causados por um fosso de desigualdade social que se alarga cada vez mais.
Não se combate esse fosso apontando dedos a meia dúzia de desgraçados que, na maioria dos casos, só querem meter comida na boca dos filhos. Combate-se esse fosso arregaçando as mangas e tratando bem as pessoas.
O André Ventura devia pensar mais antes de falar, particularmente quando se refere a maquilhagem de senhoras, entre outros tópicos interessantes. Se o fizesse, já teria chegado à conclusão a que as (poucas) pessoas lúcidas da Alemanha pré-nazi chegaram: os problemas económicos do país não foram causados pelos judeus, mas sim por uma gulodice que deu em desastre e que teve início na Bolsa de Valores de Nova Iorque, repercutindo-se pelo mundo inteiro. Porque isso dos bancos afiarem as unhas perante oportunidades de lucros aparentemente fáceis e se meterem em negócios que não correm tão bem quanto esperavam não é uma habilidade só dos tempos de desregulação dos Bush, Dick Cheney e Trump. Isto é uma artimanha que que já enche os bolsos do 1% e nos morde no proverbial rabinho – dos 99% – desde há muito tempo. A famosa Grande Depressão pavimentou o caminho para um pintorzeco de bigode ridículo inflamar hordas de mentes simples, que beberam cada palavra que lhe caía dos beiços esotéricos, culpando a minoria judaica pelo infortúnio que os assaltava.
Nestes tempos em que um bicho malvado saiu de Wuhan e tomou o mundo de assalto, os Andrés Venturas desta vida têm um palco fácil, porque todos estamos sedentos de um bode “respiratório” (como dizia “o outro”…) a quem apontar o dedo e ninguém consegue encontrar nem o morcego, nem o pangolim cujo deboche deu origem (alegadamente) a esta bela salada russa em que nos encontramos. Mas apontemos esse dedo ao espelho, porque este vírus não é produto de uma elite facínora chinesa que quer dominar o mundo – pelo menos assim o espero. Este vírus é produto de todas as vezes em que fomos de carro para um destino que ficava a vinte minutos de caminhada. Este vírus é produto daqueles sacos de plástico que envolvem as maçãs que colocámos no carrinho das compras e, quando chegámos a casa, enfiámos no caixote do lixo, ou até no saco da reciclagem amarelo. Este vírus é produto daqueles cinco cêntimos que poupámos em cada produto atestado de óleo de palma, porque comprar a versão “biológica” e que não mata orangotangos é demasiado caro para o nosso orçamento familiar. Orçamento esse que encaixa sempre o smartphone de mil euros mais recente, pois claro.
[…] altura ninguém as publicou, a não ser os amigos do duaslinhas.pt, nestes três artigos: parte 1, parte 2 e parte […]