Saúde. Tchim, tchim!

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(som – Jorge Palma, a gente vai continuar – gravação pirata)

O Bruno, a Sara e a filhota Ana publicaram uma foto a fazer um brinde, às seis e meia. Estávamos no início do confinamento e rapidamente muita gente aderiu à ideia: brindarmos juntos, todos os dias, à mesma hora.

Depois de falar com várias pessoas que acusavam já o desgaste e a saturação de estar em casa, resolvi escrever um brinde sobre a morte. Podíamos morrer por causa do maldito vírus, mas também podemos morrer por cair de uma cadeira, escorregar na esfregona do chão, engasgarmo-nos com comida… A morte é única certeza da vida mas apanhana-nos através de múltiplas formas. Pode-se literalmente morrer por nos cair um piano em cima. “Alegria, que todos morremos um dia”, foi o brinde que fiz na altura.

A partir daí, todos os dias escrevi um brinde, tirei uma foto com a originalidade possível e, acima de tudo, escrevi para os outros, para dar alento, fazer brotar um sorriso ou uma gargalhada, para me juntar a tanta gente, bem viva, resguardada em casa. Todos unidos pelo maldito vírus. Escrevi sem medo de dar erros, ser mal entendida, escrevi para os outros e não no registo de autocomiseração que caracteriza os blogues que fui escrevendo e abandonando ao longo dos anos. As seis e meia eram o momento mais importante e feliz de cada dia.

Acabou-se o confinamento, acabou-se o brinde, apareceu o convite do Carlos Narciso para escrever aqui. Um privilégio, uma forma de continuar essa escrita, pela positiva, para os outros e não para os meus botões.

E chegámos ao fim de ano, a festa ex-líbris do brinde mais importante que existe: saúde. Chegámos aqui e, como diz a canção do Jorge Palma, “Enquanto houver estrada para andar a gente vai continuar”, enquanto houver saúde, vamos conseguir vencer o maldito vírus. “Chega onde quiseres mas goza bem a tua rota”, continua a canção. Há esperança para o ano que vem, não vai ser maravilhoso e perfeito, há ainda muita estrada para andar, mas há esperança. Essa é a última a morrer.

E depois há aquela coisa da economia que se desfez em apenas dois meses e parece que vai continuar recheada de desigualdades, de desemprego, de desespero para muitos. Continua a ter muita estrada para andar com o aval da maioria das pessoas.

Já acreditei que o democrático maldito vírus fizesse as pessoas perceberem que são todas iguais, que unidas valem muito, são uma força. A força. Mas, como canta o Jorge Palma, “todos nós pagamos por tudo o que usamos, o sistema é antigo e não poupa ninguém. Somos todos escravos do que precisamos. Reduz as necessidades se queres passar bem”.

E é isso que quero, passar bem. Claro que é triste que todas as regras do fim de ano impeçam a tradicional passagem eufórica, o fogo de artifício, o ajuntamento com quem gostamos, os exageros que vêm por acréscimo, a alegria.

No meu caso, os meus amigos nucleares, com quem costumo fazer um belo jantar e uma noite de copofonia, vão estar distantes, separados por concelhos. Outros estão mais perto, mas as regras ditam que fiquemos separados. À hora a que escrevo, o mais provável é passar em casa com o gato. E não, não fico triste nem me sinto sozinha. Nem eu, nem a minha família, nem os meus amigos e conhecidos foram apanhados pelo maldito vírus. Estamos unidos e, mesmo separados, estamos à distância de um clique ou de uma videochamada.

Quero manter a tradição que cumpro todos os anos. Doze passas para 12 desejos, subir para cima de uma cadeira, sinal que vou subir na vida, deitar dinheiro à rua, sinal que não me vai faltar, bater em tachos e panelas, fazer barulho, pois estou viva. Mas, vistas bem as coisas, o único ritual que interessa é fazer barulho, muito, porque estou viva, tenho casa, comida e bebida e por isso tenho de estar grata, muito grata. Não vou pensar no que me foi retirado neste fim de ano, paciência, há-de haver mais.

Estou grata por não fazer parte das estatísticas horrorosas que todos os dias lemos nos jornais ou vemos na televisão. Nem eu, nem quem amo, “e a liberdade é uma maluca que sabe quanto vale um beijo”.

Há-de chegar o dia em que vou beijar toda a gente, dançar no meio de uma multidão até o sol nascer e queimar as, por agora, necessárias mas tenebrosas máscaras. Até lá, “enquanto houver estrada para andar a gente não vai parar”. Façam barulho, pá!

Feliz Ano Novo! Haja saúde! Tchim, tchim!

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