Prodígios das gentes de Cascais

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Não, não vou referir-me aos recentes e mui justamente aplaudidos galardões internacionais alcançados por atletas cascalenses nas mais variadas modalidades desportivas. São prodígios, de facto, a demonstrar tenacidade, árduo trabalho, aturado e exemplar treino diário.

Falar de outros prodígios é capaz de ser aliciante, em tempo de pandemia, susceptível de fomentar esperança. Que, no fundo, no fundo, por mais incrédulo que seja, o Homem gosta de acreditar em milagres!…

Poderia guiar-me nesta aventura pelo livro de Vera Cardoso, Cascais Mágico (Lendas, Mitos e Outras Histórias…), editado pela Zéfiro em 2006. Deixo ao leitor esse privilégio e vou seguir outro caminho.

Antes de mais, cumprirá dizer que a sugestão desta crónica partiu do facto de ter recebido, há dias, do meu colega e amigo da Universidade Complutense, de Madrid, Professor Santiago Montero, o livro Prodigios en la Hispania romana – Rayos, terremotos, epidemias, eclipses, datado deste ano pandémico de 2020, mas resultante de três anos de investigação sobre a adivinhação na época romana.

Por outro lado, lembrei-me de imediato do Dicionário de Milagres, da autoria (pasme-se!) do consagrado Eça de Queiroz e que Publicações Europa-América inseriu, com o nº 272, na sua colecção de livros de bolso. Aí se explica tratar-se de obra póstuma, resultante da reunião de escritos dispersos que Eça deixou, destinados precisamente a esse dicionário. Interrogam-se os estudiosos da obra queirosiana sobre o verdadeiro significado, para o escritor, dessa recolha: «ponto de partida para uma obra de diferente teor e de maior envergadura, que a morte interrompeu?». O certo é que temos aí as letras A e B, desde Abade a Burro, passando (cito apenas alguns tópicos dessa 128 páginas) por «água convertida em vinho», «alimentos mandados a santos», «andorinhas», «anjos enviados a consolar», «aparecimentos de almas que fazem indicações ou recomendações relativas aos seus restos mortais», «aves», «bandeira»…

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Uma fonte para a história do que de prodigioso se passou com as gentes de Cascais são as tábuas de milagres. Um hábito que já vinha do tempo dos Romanos. Os Romanos mandavam fazer pequenos altares de pedra e aí se gravava o agradecimento feito de boa vontade. As tábuas de milagres, por seu turno, muito vulgares por exemplo no século XVIII, eram pinturas ingénuas, onde se narrava o prodígio ocorrido, em jeito de legenda da pintura alusivo ao caso.

Sirva-nos de exemplo a que existe na ermida de Nossa Senhora do Porto Seguro, que foi de grande devoção e tradição em Cascais e que hoje praticamente passa despercebida. Fica mesmo ao cimo da Rua Visconde da Luz. Aí se lê:

«Ano 1745. EX-VOTO a Nossa Senhora do Porto Seguro de Cascaes. No regreço da faina, José Borges e filho Diogo salvos por terem apego à Santa N(ossa) S(enhora) P(orto) S(eguro). 60 dias indulgências. P(ai) N(osso) A(ve) M(aria) S(alve) R(ainha)».

Na pintura, os vagalhões do mar revolto, o rapaz agarrado ao mastro partido, o pai ao leme; no alto, em traineira engalanada (como as das Festas do Mar) e de a bandeira portuguesa na popa, a Senhora e o Menino Jesus coroados, tendo no manto (pormenor curioso!) o escudo das armas da vila.

São estas tábuas, para além do registo das devoções populares, eloquente testemunho de usos e costumes da época, o vestuário, os objectos de uso comum e, neste caso, das embarcações existentes.

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Não se pode resistir, porém, a compulsar de novo o relatório do Prior Marçal da Silveira, que, depois de contar um dos milagres de Nossa Senhora da Guia, escreve:

«E o tal milagre o viu muita gente em um quadro estampado no mesmo templo da Guia, com outros que a mesma Senhora livrou, muitas embarcações do cativeiro dos Mouros, consumiu o tempo».

Embora entrecortada, a frase dá conta de ali terem existido – e o tempo as consumiu – outras tábuas de milagres referentes a salvamentos ocorridos na sequência de combates com a pirataria moura, que infestava a nossa costa.

A tradicional narrativa do milagre da Guia é deveras curiosa, vê-se que o sacerdote a quis embelezar no estilo. Vale a pena transcrevê-la tal qual, ainda que actualizada na forma, para que melhor se possa apreciá-la, na sua singeleza. E é como segue:

Desapareceu, um dia, de casa de sua mãe um menino, cuja idade seria de cinco até seis anos, sem que a triste mãe pudesse saber onde estava. Já o presumia caído de algum penhasco abaixo no mar e afogado; já o deplorava morto de algum infausto sucesso na terra, se bem que a verdade era que umas bruxas lho tinham arrebatado de casa e o foram lançar em um despenhadeiro, em um monte sobre o mar, que confina para aquela parte da Guia.

Aos choros que o menino dava acudiram uns pastores de gado, que, dando notícia à vila, saíram muitos, com a desconsolada mãe, a socorrerem a inocência. Não foi pouco o que custou a tirarem-no pelo profundo e inacessível despenhadeiro. E, alegres todos polo verem sem perigo, lhe perguntou a mãe quem o metera ali e quem lhe dera de comer havia tantos dias. A que o menino satisfez e disse que umas mulheres o trouxeram pelo ar e atiraram com ele àquela cova; porém, que uma senhora mui fermosa lhe levava todos os dias umas sopinhas de cravos para ele comer.

Veio a mãe e todos à igreja a renderem graças à Senhora. E, assim que o menino viu a Senhora no altar, disse estas formais palavras:

– Ó mãe, eis ali está a Senhora que todos os dias me dava as sopinhas de cravos para comer!

Chamou-se este menino José Gomes Lemos, de alcunha «o Chapinheiro». E foi nesta praça, depois, insigne cirurgião-mor do Regimento e mui prático em Medicina e grande filósofo.

1 COMENTÁRIO

  1. O que um título pode evocar: “Prodigios en la Hispania Romana…” ou ” Dicionário dos Milagres”, este do célebre Eça de Queiroz, que nos habituou a outros registos tão diferentes, e publicado postumamente.
    Dizer que aprendo sempre muito com os textos de José d´Encarnação já é um lugar comum, mas é a verdade pura. Como filho adoptivo de Cascais desde tenra idade (eu também sou, mas a partir da juventude) sabe tudo o que se relaciona com a História da vila, até o que diz respeito à ligação entre profano e sagrado. Tenho de assumir aqui que pouco ou nada sabia da Nossa Senhora do Porto Seguro, que salvou pai e filho da bravura do mar, ou que alimentou o menino retirado à mãe com as “sopinhas de cravos”. E ainda por cima o menino viria a ser personagem ilustre…E, ainda pior de assumir, nunca reparei na pintura ao cimo da Rua Visconde da Luz. Ainda bem que leio estas crónicas magníficas…

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