Reparei logo, mas só depois de me instalar é que fui espreitar o atelier de costura Ideias com Panos. Gostei do nome e há que abraçar a vizinhança.
Peguei numa camisola de malha e entrei como cliente. Ela analisou o buraco atentamente. Ia pôr uma etiqueta, das que tinha para lá, mas antes teria de cerzir, uma arte só para algumas, em vias de extinção.
Impressionada, levei outra malha com um buraco ainda maior e ela… arranjou. Quando recuperou, e tornou mais elegante, um vestido preto manchado de lixívia… apaixonei-me por ela. A partir daí entrego a roupa e digo “resolva por favor”. Acaba sempre por baixar os preços porque gosta de mim, eu regateio sempre porque gosto dela ainda mais. Resulta.
Está sempre na máquina de costura, uma das várias que tem no atelier espaçoso, cheio de coisas bonitas, coloridas, muito menos desarrumado do que pensa.
Desde as fardas da marcha do bairro, vestidos de baptizados, casamentos, colecções completas para os desfiles da Junta (onde também pisa a passerelle, toda giraça) a remendos e bainhas, faz de tudo. Resolve.
É tolerante, tem sentido de humor, uma humildade sábia mas não subserviente, é paciente e conciliadora. Com uma graça desfaz um potencial atrito entre clientes, vizinhos ou amigos que aparecem pelo atelier. Mas, quando os disparates são demais, dá a sua opinião com uma assertividade que arrasa os argumentos alheios.
Faz-me rir, peço e sigo os seus conselhos, saio sempre melhor do que entrei no Ideias com Panos. Não sou a única.
Ela sim, é uma verdadeira amiga dos animais, o marido, caçador, tem vários cães, acolhem gatos e… depois há a Pipoca, uma rafeirita pequenina com direito a um puf só para ela. A “dona do pedaço”, assim lhe chama, é um animal que me trata com total indiferença, nariz empinado. Ignora-me simplesmente, não olha para mim sequer. Só existe neste mundo quem ela escolhe. Sou fã.
Tem a chave de casa SOS. “É a da viola com a bandeira portuguesa” digo-lhe cada vez que a procura na gaveta do atelier.
Numa noite de chuva valente, desceu de pijama e pantufas pois, mais uma vez, fechei-me fora de casa. Desde aí, e esta não foi a penúltima nem a última vez, digo envergonhada que compreendo se quiser devolver-me a chave, é um abuso. Nada diz.
É mãe de dois filhos, tem 68 anos, casou há 50 com um lisboeta, robusto, voz grossa, barba rija, impõe respeito mas, na volta, derrete-se em mel. Não é assim tão difícil. Bom, excepto quando o jantar, da sua exclusiva responsabilidade, não está dentro do horário, ou falta alguma coisa. “Fico pelos cabelos!” Não tem lá muitos…
Do pouco que sei, porque me contou, a vida desta algarvia que se fez costureira nas oficinas de alfaiataria da Baixa de Lisboa, teve momentos cruéis, de mandar qualquer um ao tapete. Conseguiu levantar-se sem perder o brilho no azul dos olhos.
Antes do maldito vírus, falámos sobre um vestido dos anos 20, nada de foxtrot, um vestido de dia, casual chique, à minha altura. Levei fotos, discutimos pormenores. Não queria o foxtrot, mas queria as fitinhas…
Depois de o vírus ser exterminado, o vestido será costurado e estreado na Noite da Dança! E se, por mera distração, calhar haver casamento, o vestido de noiva é da autoria da minha modista estilista. Uma artista do bairro da Mouraria que tem o nome do próprio fado. Amália.