Em 1980, em busca de formação que me permitiu “entrar” na primeira colheita de órgãos de cadáver e na primeira transplantação bem-sucedida, em Portugal, deixei um “hospital do século XIX, em Coimbra, para entrar no século XXI”.
Como também já escrevi, “os meus primeiros dias, em França, constituíram uma experiência soberba: não a descoberta de uma catedral de Notre-Dame ou de um museu do Louvre; antes a exploração de outra galáxia”.
Confesso, contudo, que a iniciação até nem foi tão “cândida” como o esperado. Tendo arribado no fim-de-ano em que ocorreu o terramoto na ilha Terceira, foi com surpresa que, logo a 2 de janeiro, deparei com um Serviço de Nefrologia do “outro mundo”… mas quase deserto. Esperava-me, no entanto, uma secretária clínica, um “luxo” nunca visto em terras lusas. O “patrão” iria receber-me no dia 7, segunda-feira, pelas 10 horas da manhã e logo ali ela me facultou o programa a cumprir nos próximos meses. A minha estreia seria uma reunião científica, marcada para as 8H da matina. E, talvez por que já avisada do que a “casa lusa gastava”, ela até se deu ao cuidado de avisar, bem-avisado, que seria melhor apresentar-me muito antes. Ali, garantiu, pegava-se muito cedo ao trabalho…
Desde miúdo apostado em não fazer fracas figuras, sobrou-me tempo para medir trajetos e, nessa noite, quase nem dormi. Porém, com um trânsito que se complicou e sem cartão de estacionamento, fui obrigado a abandonar o Dyane a milhas. E só depois de muito correr, e muito me identificar, consegui alcançar o vestiário. Consultado o relógio, nada mau, faltava ainda um quarto de hora para a hora marcada.
Depois da tempestade vem a bonança. Acolhido por uma louraça que, ainda a mudar de roupa, presenteou os meus retorcidos olhos com a retirada da sua própria lingerie, ela mesmo me cedeu o equipamento e um cacifo. “Ferpeito”, como diria M. Dupont, consegui entrar no corredor, ainda deserto, com dez minutos de avanço sobre o horário oficial…
– Tanta conversa e os “franciús” sem aparecer… – Descansei, a pensar no “quarto de hora académico de atraso mínimo”, velha tradição da minha Universidade.
Até que, após alguma espera e sem vivalma por perto, me dar um baque. Encostado o ouvido à porta, ouvi então distintamente alguém a palestrar no interior. Confirmada a minha aselhice, ainda pensei em cavar dali. Mas como podia eu “dar de frosques” logo na primeira reunião se, a seguir, o “chefão” me “acertaria o passo”?
Inesquecível, ao abrir sorrateiramente a porta para passar despercebido, retenho na memória o atropelamento dos olhares. Acreditem que, de enfiado, até desejei que o chão me engolisse. E a lição ficou para sempre: nas décadas seguintes, nunca ninguém esperou por mim, a minha consulta foi a única que, no SNS, nunca teve lista de espera e, reconhecido, tal como com os comboios dos países civilizados, os relógios podiam acertar-se pelo funcionamento dos serviços que prestei.
Portugal viveu esta semana momentos “épicos”, com o rotineiro transporte e armazenagem de uma simples vacina a merecer a atenção de mísseis atómicos: em Évora e não só. Autêntico “segredo de Estado” que a tutela recusou revelar, em Coimbra, por exemplo, o armazém escondia-se nos arredores da cidade, ainda mais bem guardado do que os paióis de Tancos e os arsenais do Banco de Portugal. Tudo junto!
Propalado por todos os canais, e com a presença de gente importante, os CHUC, reconhecidamente uma unidade de excelência do nosso país, iriam iniciar o programa de vacinação mais badalado de todos os tempos no dia 27, pelas 10 horas. Em confinamento, conforme a televisão anunciava, o povinho aguardava ansioso pela primeira inoculação, por sinal aplicada a uma jovem enfermeira que, certamente a seguir aos procedimentos indicados “superiormente”, e a ser obrigada a retirar a lingerie, até prometia um “espetáculo” de pôr os olhos do pessoal em bico.
Desolação a nossa porque, Coimbra é Coimbra e as tradições são para manter. Às 10 horas, tudo a postos, e nada apareceu em direto. E só às 13, pelos telejornais, fomos informados que, sem o strip-tease por que todos ansiávamos, a jovem só foi vacinada às 10H42M. “Mauzinho de mais”, mas num “preciosismo” digno dos melhores apontamentos televisivos em que os nossos canais são férteis, uma estação até insinuou que, nesse momento, em Lisboa, já teriam sido vacinadas “mais de 192 pessoas”. Se calhar, bem contadas, terão sido 192 pessoas e meia…
Mas será que perante o espetáculo que se desenrola perante os nossos olhos, e depois das raleiras por que passamos, e mesmo sem silicones à vista, não temos obrigação de esperar por todos os “quartos de hora académicos” que certos “doutores” têm todo o direito de usufruir?