Vagar

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1791

Pus o sono em dia, acordei literalmente ao meio dia, fiquei na ronha como se estivesse em Lisboa, saí para cumprimentar o mar. O meu spot para comer um sargo acompanhado com uma vista perfeita está de férias, de maneira que me decidi pela marisqueira. No final da refeição cheguei finalmente à vila que há muitos anos tornei minha.

Depois de parar de procurar, encontrei os amigos daqui. Os três de uma só vez. Sentei-me à conversa com eles, aventurei-me num tirinho da aguardente da terra. É para homens de barba rija, por isso, com respeito, deixei o cálice de medronho a meio.

Perdi o pôr do sol, fui despedir-me do mar, voltei para casa. À porta estava a D. Fernanda. Conversámos sobre o pão delicioso, os enchidos, o irresistível queijo fresco de cabra. Deu-me a dica onde comprar os melhores. Pelo meio da conversa referiu-se mais do que uma vez ao marido, assim, ao de leve, como quem não quer a coisa. Coisa é uma palavra estranha para essa coisa tão estranha que é a morte. Falou do seu Joaquim. Do terreno que tratou com tanto amor em vez de ir ao médico tratar-se. O cancro levou-o num mês. Ela estava lá, a seu lado. Disse que foi melhor assim, que de outra forma iria revoltar-se com os médicos que não tinham feito tudo por ele. Fizeram, ela fez-lhe uma canja com uma galinha da criação, o último mimo que deu ao seu Joaquim. Há três anos. Na altura, conta, teve a neta por perto a dizer-lhe que estava ali, que os outros que a amavam estavam todos ali para ela. Falou com calma, sem dramatismos, eu contive as lágrimas por ambas.

Repeti a frase em catadupa. A morte do meu Pirata não se podia comparar à do seu Joaquim, as pessoas e os animais não estão ao mesmo nível. Contei-lhe que estava ali para conseguir acabar de contar a sua história, há tanto tempo atravessada. Repeti de novo que a morte do seu Joaquim e do meu Pirata não eram comparáveis até ela me interromper. Disse que percebia muito bem pois sempre houve cães pela casa e pelo terreno. Mas nenhum era como o Chico, os outros cães eram de toda a gente, o Chico era do seu Joaquim. Com um sorriso que nos amparou, repetiu de novo que compreendia e contou-me que o Chico mandou a alegria fora quando perderam o Joaquim dela. Morreu um mês depois, sem causa aparente. Disse-lhe que o amor nunca morre e ela repetiu: “O amor nunca morre. Obrigada, soube bem desabafar, deve estar cheia de frio”. “Não, não tenho frio algum, estou bem”. Toquei-lhe no braço, agradeci de novo, não fosse o maldito vírus tínhamo-nos abraçado.

Comi dois pratos de sopa, ataquei de novo o queijo de cabra e a chouriça picante enquanto via a série lamechas. Deixei cair umas lágrimas de consolo.

Desde que saí de Lisboa que vivo numa avalanche de emoções, boas, na sua maioria. O riso dos amigos que me trouxeram até aqui e o amor que sinto por esta terra têm-me levado ao colo. Sim, tenho uma avalanche de emoções à flor da pele, mas não é de agora. Vivi o confinamento, e a saga que se tem seguido, com imenso optimismo, vivi a morte do Pirata rodeada de amigos mas, em ambos os casos, passei ao lado da dor. Agarro-me ao optimismo quando ela me quer atacar, foi para lhe escapar que vim parar aqui.

Contava que o mar gritasse e desse murros nas rochas por mim. Mas não, só me devolve um doce embalar, oferece-me de mão aberta o rendilhado das ondas que se estende até a meus pés e morre na areia. Contava com o silêncio pesado da vila mas só consigo ver casinhas caiadas que os catraios contornaram a lápis de cor. Tão bonitas. Contava com um céu pejado de nuvens negras mas todos os dias as estrelas me acompanham ao café. Contava perder-me pela costa alentejana mas é precisamente no infinito da paisagem que descubro um caminho para me encontrar. Devagar, estou na terra do vagar.

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