Porque é que a derrota de Trump não é a derrota do trumpismo

A autora é economista, professora na Universidade de Paris III, Sorbonne –Nouvelle, membro da mesa Nacional do Bloco de Esquerda.

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A imensa satisfação com a vitória eleitoral de Joe Biden é inversamente proporcional  ao  profundo asco que nos inspirou a presidência de Donald Trump: a maneira descomplexada e despudorada como criminalizou os imigrantes, banalizou o racismo, negou as alterações climáticas e os estragos da pandemia, rasgou o acordo com o Irão,  cortou a ajuda humanitária à Palestina e duplicou o número de drones militares americanos no Iémen.

Sob este ponto de vista, podemos dizer com David Griscom (citado pelo filósofo americano Ben Burgis):  “Eis um show de que não gostaríamos de ver a segunda temporada”[1].

Dito isto, e passada a satisfação ou mesmo a euforia  da vitória -no fio da navalha, convém realçar  e com grandes perdas para o Partido democrata- temos de assentar os pés no chão. O homem recém-eleito para a casa Branca não vai unir uma América que teria sido dividida por Donald Trump. Não foi Donald Trump que dividiu a América. Foi a divisão da América que permitiu a ascensão de Donald  Trump ao poder. Uma coisa é ter exacerbado divisões, outra é tê-las criado.

Só a não  compreensão –por falta de clarividência ou oportunismo-   da(s) gigantesca(s) fractura(s) estaduniense(s)  ante-Trump, poderá alimentar ilusões sobre a sua reversão  na era Biden. Convém não esquecer, com efeito, que a eleição de Trump aconteceu em 2016,  após três décadas e meia de políticas neoliberais, inauguradas por Reagan no início dos anos 80,  e aplicadas com o mesmo fervor tanto pelos republicanos como pelos democratas que se foram alternando no poder, Obama incluído.

Tais políticas que se articulam em torno de três eixos –baixa da tributação das empresas e das classes abastadas,  livre-comércio no quadro da mundialização feliz e desregulamentação económica e financeira– levaram  à periferização das zonas desindustrializadas  pelas deslocalizações e à explosão das desigualdades, criando o viveiro onde se desenvolveram os  futuros eleitores de Trump: os brancos (muito) pobres, trabalhadores outrora eleitores democratas, que, desesperados com o desastre económico que se abateu sobre as suas regiões, e a incapacidade dos partidos mainstream de lhes darem resposta,   foram sensíveis ao apelo do candidato populista[2].

Os democratas não são, por conseguinte,  a solução ao  problema do populismo  nos Estados Unidos, já que são parte do problema. Como o disse em recente entrevista a um semanário francês  o  economista David Cayla[3], só o abandono dos tratados de livre comércio  e das políticas neoliberais poderia acabar com o populismo.

Ora, o eleito é a perfeita incarnação do neoliberalismo. Representante das elites  da mundialização feliz, Joe Biden  -como o seu par Kamala Harris, cuja nomeação foi saudada pelos meios financeiros[4]–   é tudo menos um amigo da classe trabalhadora, implicado que esteve -como veio lembrar há meses o jornalista e historiador Thomas Franck[5]– numa grande parte dos desastres que marcaram as últimas décadas de que destacamos, no plano económico, os acordos comerciais contrários aos interesses dos trabalhadores, e uma legislação cruel sobre as falências.

Refreado pelo actual contexto cuja gestão calamitosa o levou ao poder e os ventos de desglobalização  que têm vindo a soprar, Joe Biden poderá vir a conter o tempo necessário  os seus ardores neoliberais, tudo dependendo igualmente da pressão que sobre ele poderão exercer os inúmeros movimentos de cidadãos e de activistas, suscitados pela nova esquerda americana, cuja mobilização foi fundamental para o seu acesso ao poder.

Mas será a contragosto que este amigo dos ricos e da guerra, dos encarceramentos em massa, e das restrições às liberdades individuais, se desviará, mesmo de forma infinitesimal, das ideias neoliberais. Assim sendo, o mandato do  novo presidente dos EUA –como de resto da sua vice-presidente– terão servido para fortalecer o viveiro do trumpismo e favorecer a sua futura vitória eleitoral.


[1] Ben Burgis, No Honeymoon for Joe Biden, in Jacobin, 11/07/2020, retomado  por  Médiapart, em 9 novembre 2020; somos nós que traduzimos a partir da versão francesa

[2] Sobre este assunto, poder-se-á  ler com muito proveito o artigo da socióloga americana Arlie Hochschild, analisando os resultados  do inquérito que realizou no Estado da Louisinane, um dos mais pobres dos EUA, onde uma maioria da população votava pelos candidatos republicanos e que meses mais tarde daria a vitória a Trump; Pourquoi Donand Trump a séduit l’éléctorat  populaire, Anatomie d’une colère de droite, in Le Monde Diplomatique, versão francesa, Agosto de 2018, artigo adaptado do livro da autora “Strangers in Their Own Land: Anger and Mourning on the Americain Right , The New Press, New York, 2016 

[3] David Cayla, in entrevista a Marianne, 9 de Novembro de 2020 ; somos nós que traduzimos

[4] Como o revela  este  título de um artigo do Wall Sreet Journal « O entusiasmo de Wall Street indica que as reformas financeiras não constituiriam  a prioridade deste governo”, onde se escreve que   “Biden conseguiu conter a ala esquerda do seu partido”, in Nomination de Kamala Harris: la victoire des milieux financiers et de l’aile modérée du parti démocrate, in le Vent se lève, 16 de  Agosto de 2020; somos nós que traduzimos

[5] Thomas Franck, « Avec le démocrate Joe Biden la gauche américaine a le cafard, Aux Etats-Unis, rien ne changera fondamentalement » in  Le Monde Diplomatique, versão francesa,  Junho de 2020

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