Os transportes públicos em Portugal não davam um filme, ao contrário do que diz o ditado. Davam uma saga com várias sequelas e/ou prequelas. O género? Entre a comédia dramática e o thriller psicológico.
Fala-se muito no excesso de automóveis nas estradas portuguesas, no mal concebidas, planeadas, construídas e geridas que elas estão um pouco por todo o País. Fala-se dos flagrantes atropelos ao Código da Estrada que todos os dias acontecem, e o que é pior, frequentemente com desfechos dramáticos. Fala-se da necessidade de restringir o tráfego automóvel em nome da mobilidade urbana e do meio ambiente. Há quem aposte nas energias alternativas como a solução para os males da poluição atmosférica (a sonora e as carcaças de automóveis nas sucatas são outras histórias…). Há quem reclame, e bem, por redes de transportes públicos mais eficazes e ao alcance de toda a população, precisamente para descongestionar o tráfego cada vez pior, na era das Ubers, TGVD e outras coisas similares. Há quem fale no conceito de carro-centrismo e de tudo o que é negativo que esse culto às quatro rodas acarreta. Mas foquemo-nos nos transportes públicos.
Alguém considera aceitável ou até positivo que uma pessoa tenha de se levantar com duas horas (ou mais) de antecedência para chegar a tempo à escola, universidade ou local de trabalho (mesmo em época de restrições pela pandemia do COVID-19, há quem tenha de se deslocar nem que seja uma a duas vezes por semana)? Mesmo que a distância não seja tão grande? Imaginam os leitores do Duas Linhas o stress e a ansiedade? Pois eu não imagino: sei. Utilizadora de transportes públicos desde tenra juventude, pertenço com orgulho àquela minoria que deixa a aquisição de veículo automóvel para depois. Ou porque a vida está cara, ou porque o estacionamento está cada vez pior, ou por essas e outras razões. Sempre utilizei transportes públicos e já lhes conheço as manhas. Por exemplo, na véspera de greves convocadas pelos sindicatos, já sei que os transportes do sector vão ter “atrasos devidos a falha técnica” mesmo a tempo do trabalhador sair do seu turno e ir descansado para casa, ou como relatou um cidadão nas redes sociais numa dessas greves, fazer “piquete” a beber cervejas numa esplanada. Não são todos, mas que os há, há.
Também já sei que cumprir os (maus) horários é uma miragem, mesmo em época onde não deveria existir tanto carro a circular por via do tele-trabalho instalado: todas as desculpas são válidas, desde o clima instável que ora chove, ora faz sol, até às obras na via pública, passando pelos acidentes de viação mais ou menos expectáveis, o mau estado do piso, o estacionamento abusivo que impede a passagem dos veículos sem o perigo iminente de um toque ou de um choque frontal ou lateral… aqui entram vários factores, como a minha experiência me demonstrou: a falta de planificação urbana que não contemplou a explosão do número de automóveis nos últimos 25 anos, o desadequado dos horários dos autocarros, eléctricos e comboios, o deixar “ao Deus dará” as cidades pequenas e vilas no chamado “Portugal profundo” porque o que estava a dar (sobretudo nos tempos dos dinheiros abundantes da CEE) eram as estradas e os carros, e, claro, o facto de quem faz esses horários e percursos mais parece que não faz a menor ideia onde ficam as localidades e quais são as reais necessidades das pessoas. Ninguém gosta de perder 30 minutos – no mínimo – entre transportes, seja de manhã, seja para ir almoçar a casa (e dar a refeição às crianças, se as há, ou a familiares doentes se se tratam de cuidadores) ou ao fim do dia, onde já se está tão exausto que basta encostar a cabeça ao vidro do autocarro e dorme-se logo. Esta semana foi uma situação dessas: fui ao escritório da empresa onde trabalho, num dos pólos empresariais de Oeiras, e ao regressar a casa para almoçar e fazer o resto do dia de trabalho ao computador, as contas ao tempo saíram-me mal: o autocarro atrasou-se. Para além dos 20 minutos de espera (mais dez do que o suposto) ainda tive de esperar mais dez minutos pelo comboio na linha de Cascais, cujos horários também deixam muito a desejar.
Chego a pensar que por ser utilizadora de transportes públicos sou uma cidadã de terceira ou quarta categoria. Apesar de pagarem passes de custo de primeiro mundo. Parece uma tese absurda, mas tendo visto a atitude sobranceira, arrogante e incivilizada de certos cidadãos automobilistas que olham com desprezo para os transportes públicos, mais parece verídica. Isto sem falar no aparente desconhecimento flagrante da realidade que demonstram os administradores das empresas de transportes colectivos de passageiros, que não devem saber o que é andar nos mesmos. Conheci pessoas com automóvel que por curtos períodos de tempo não puderam utilizar os seus veículos. Pois bem, uma delas chegou a mencionar o andar de transportes públicos como um horror, pela quantidade de gente misturada… que dizer agora em tempos de pandemia, onde as empresas de transportes não se dignam a aumentar o número de composições, ou carruagens, ou viaturas, para tentar ajudar na luta contra a propagação do malfadado coronavírus, já que quem trabalha precisa de se deslocar de alguma forma.
Existe no Instituto Superior Técnico de Lisboa um doutoramento em Sistemas de Transportes, ao que sei; seria muito interessante que tanto os docentes, como os alunos e os investigadores saíssem mais dos seus gabinetes… e andassem de transportes públicos para verem a realidade do que estudam, por mais bem preparado que seja esse curso doutoral. Felizmente, no deserto da falta de debate sobre este tema, vão surgindo trabalhos interessantes. Chamo a atenção para dois trabalhos efectuados pelo projecto Fumaça:
1- Entrevista com Helena Amaro, doutoranda em Arquitetura pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto e pelo CHAIA – Centro de História da Arte e Investigação Artística da Universidade de Évora. Fala-se sobre a dependência e os apoios ao veículo particular em detrimento dos transportes públicos, da descentralização da gestão dos transportes, a nível nacional, da acessibilidade fora dos centros urbanos e da mobilidade como fator de ascensão social.
2- Entrevista com Rosário Macário, doutorada em Sistemas de Transportes no Instituto Superior Técnico, professora e coordenadora do Mestrado em Planeamento e Operação de Sistemas de Transportes no mesmo instituto e administradora não executiva da consultora TIS – Transportes, Inovação e Sistemas. Fala-se sobre mobilidade nos centros urbanos; a descentralização da gestão dos transportes públicos; a redução do preço dos passes únicos que, diz, foi calendarizada para acontecer perto das eleições; e, ainda, o papel da iniciativa privada nos veículos coletivos de passageiros.
Recordo que países de primeiro mundo têm excelentes sistemas de transportes públicos e que mesmo membros dos Parlamentos desses países os usam sem qualquer problema. Por exemplo, Suíça e Inglaterra. Se calhar, era um bom exemplo a copiar, já que Portugal é, desde há largas décadas, exímio a copiar o que lá fora se faz. E nem é preciso ir de carrinho.