Quanto vale a vida de uma criança em Portugal?
Pouco ou nada, é a conclusão que tiro, lendo a notícia de mais um tribunal que aplicou uma pena suspensa a um homem condenado por abusar sexualmente da enteada de 10 anos. Os argumentos com que os juízes justificam a sua decisão de suspender as penas – previstas no Código Penal – e deixar os agressores comprovados em liberdade são quase sempre os mesmos: o arguido não tinha antecedentes criminais e estava bem integrado na sociedade. Em todas as notícias e acórdãos que leio, fico invariavelmente com a sensação de que a Justiça portuguesa está mais preocupada em salvaguardar os direitos e a reinserção dos agressores do que os direitos e a saúde mental das vítimas. Os criminosos são deixados em liberdade, ou porque são muito jovens, ou porque são muito velhos, e os juízes julgam que lhes devem dar uma oportunidade, ou então que a pena suspensa será encarada como uma solene advertência, suficiente para afastar o arguido de ilícitos criminais (estou a citar).

E as vítimas?
Existindo tanta bibliografia científica actualmente disponível em português, parece-me impossível um juiz – ou uma juíza – nunca ter lido um artigo ou um livro de Psicologia sobre as consequências profundas e permanentes dos abusos sexuais na infância e adolescência. Como, então, explicar este menosprezar do sofrimento das vítimas em prol dos direitos dos agressores? Se não é falta de conhecimento, será falta de empatia?
Creio que é aqui que a literatura poderá chegar aonde a ciência não alcança. Talvez um juiz leia uma tese de mestrado em Psicologia sobre abusos sexuais e não seja capaz de sentir empatia pelas vítimas, cujo sofrimento é descrito com expressões como stresse pós-traumático, enurese, distúrbios alimentares, automutilação, ideações suicidas. Mas talvez esse mesmo juiz – a menos que seja ele próprio pedófilo ou sociopata desprovido de empatia – sinta no seu âmago o trauma das vítimas, lendo um texto literário como Instrumental, publicado pela Alfaguara. «A violação infantil é o Evereste do trauma», escreve James Rhodes neste seu livro autobiográfico. «Fui violado quando era criança. Durante cinco anos, tive sexo com um homem três vezes maior que eu e trinta ou quarenta anos mais velho, contra a minha vontade, dolorosamente, secretamente, selvaticamente, dúzias de vezes. Transformei-me num objecto para ser usado.[O agressor] roubou-me a infância. Roubou-me a capacidade de ser pai. E riu enquanto o fez.» Quase ouço o riso de todos estes pedófilos que saem dos nossos tribunais com pena suspensa. Saem em liberdade, liberdade para reincidirem e transformarem a vida de mais crianças «num campo de batalha, repleto de perigos, ameaças, terror e dor». E enquanto os agressores são livres de retomarem as suas vidas e rotinas, as vítimas permanecem reféns, como James Rhodes, durante décadas: «Trinta anos volvidos continuo aqui, preso ao passado, em sofrimento, com a sensação de que a culpa foi toda minha.»
Rhodes era uma criança pré-púbere quando foi violado pela primeira vez e, tal como acontece com a maioria das vítimas, a sensação de culpa entranhou-se-lhe no corpo, o sentimento de self-hatred, nojo de si próprio, tornou-se um traço da sua personalidade, do qual nunca se conseguiu libertar, apesar de hoje ser um pianista conceituado e desfrutar de uma vida de considerável sucesso: «Quando era criança aconteceram-me coisas, fizeram-me coisas, que me levaram a conduzir a minha vida com a convicção de que eu, apenas eu, posso ser responsabilizado pelo que existe no meu íntimo e que abomino. É evidente que só me fizeram aquilo porque eu já era inerentemente pérfido a todos os níveis. E nem todo o conhecimento, compreensão e bondade do mundo alguma vez mudarão o facto de que essa é a minha verdade. Sempre foi. Sempre será.»
Sempre que um juiz aplica uma pena suspensa a alguém que comprovadamente abusou de uma criança, mesmo que o agressor o tenha feito sem penetração, ou só uma vez, ou por cima da roupa (atenuantes invocados nos tribunais), esse juiz está a mostrar às vítimas aquilo que elas interiorizaram pelo simples facto de ninguém as ter protegido do mal: «não há nada nem ninguém nesta vida», explica Rhodes, «que possa ajudar-me a ultrapassar esta situação. Nenhum familiar, cônjuge, amigo, psiquiatra, iPad ou comprimido.» E escusado será dizer que muitas vítimas experimentam, na adolescência ou na idade adulta, todo o tipo de panaceias para se libertarem da dor, desde o consumo de drogas a comportamentos sexuais de risco, culminando em tentativas de suicídio. «Por vezes, a minha capacidade para suportar e desejar a dor é infinita, um poço sem fundo de automutilação e uma excitação perversa na procura de mais e mais.»
O relato de Rhodes é um grito de raiva profundamente comovente e lúcido, sem nunca entrar em descrições gráficas dos abusos de que foi vítima. Não precisamos dos pormenores escabrosos para sentir na pele as consequências devastadoras que esses abusos tiveram na vida desta criança. Na vida de qualquer criança. Num trecho em que interpela o seu agressor (Peter Lee, que morreu antes de ser levado a julgamento), Rhodes deixa bem claro: «Nada do que me fizeste foi inócuo, agradável ou carinhoso, apesar do que disseste. Não passou de uma abjecta violação da inocência e da confiança. Só posso desejar que as pessoas como o senhor Lee, que procuram activamente e praticam o seu desejo sexual por crianças, compreendam, deveras, o mal que provocam. Que menosprezar ou justificar os actos como sendo recíprocos e aceitáveis, como sendo uma expressão de amor, é o maior logro que pode haver.»
Talvez os juízes portugueses que aplicam penas suspensas necessitem de ler Instrumental. Talvez as memórias de James Rhodes devam ser leitura obrigatória nos cursos de Direito e de formação de magistrados. Já sabemos que a Faculdade de Direito de Lisboa é palco e palanque de mentes misóginas, mas custa-me a crer que além de misógina, a nossa Justiça também compactue com a pedofilia. Nós, mulheres, temos voz para nos defendermos; as crianças, não. «A vergonha é o motivo pelo qual não revelamos a verdade», explica Rhodes. «As ameaças funcionam durante uns tempos, mas não durante anos. A vergonha garante o silêncio e o suicídio é o derradeiro silêncio.»
Mas Instrumental é muito mais do que um relato de abuso e trauma. Instrumental é uma declaração de amor às artes, em especial à música clássica, não fosse Rhodes pianista. «Embora o perdão e a meditação, a leitura e a escrita, o diálogo e a partilha ajudem», diz ele, «a criatividade é, para mim, uma das maneiras mais profundas de ultrapassar um trauma.» Todos os capítulos têm por título uma peça de música clássica e começam com um texto breve sobre a obra e o respectivo compositor. E é precisamente partindo de uma citação de Schumann que Rhodes nos indica o caminho, enquanto sociedade: «Schumann diz-nos: “Lançar luz para a escuridão dos corações dos homens — esta é a obrigação do artista.” Eu acredito que é a obrigação de todos nós, independentemente daquilo que fazemos para preencher o nosso tempo.»
Levemos, pois, a luz às faculdades de Direito e aos tribunais do nosso país.
Instrumental – Memórias de Música, Medicina e Loucura, de James Rhodes (tradução de José Remelhe, Alfaguara, 2017)