Esta é uma crónica especialmente dedicada aos que, pelos anos 40 e 50, andavam pela freguesia de Cascais. Complementarmente, para os eventuais curiosos da história local e das transformações que o território foi sofrendo. Todas as achegas serão bem-vindas para completar recordações e preencher lacunas.
De Cascais para norte, duas eram as estradas principais: a EN nº 9, que, como já houve oportunidade de contar (veja-se Arquivo de Cascais 14 2015 96-105), ia até Alenquer, e que é hoje a Avenida de Sintra; e a EN 9-1, vulgarmente conhecida como Estrada da Malveira. Desta praticamente nada diz o Guia de Portugal (1924), limitando-se, na pág. 566, a indicar que há, da Malveira, uma estrada que «vai directamente a – 17 km, Cascais, pela Aldeia de Juz».
Vejamos, então, como se de uma via-férrea se tratasse, as estações e apeadeiros a encontrar, nessa altura, de Cascais até à Malveira.
Começava junto à Marelina e ao Jardim Visconde da Luz. E se me permito aludir a uma casa comercial é porque se tratava de uma loja de referência, numa época em que as meninas aprendiam costura, as modistas eram profissão importante e na Marelina se encontrava tudo o que era necessário para esse efeito, desde os panos a tudo quanto à retrosaria diz respeito. Não só por isso. É que, na parede do edifício, estava a placa do Automóvel Clube de Portugal a dar a direcção para Malveira e Collares, uma placa que se perdeu aquando das obras de remodelação do edifício.
A estação seguinte era a Estrela do Norte, uma das drogarias mais frequentadas, sita no renque de casas imediatamente a sul do imóvel onde estão as Finanças. Aí começa agora a Avenida do Ultramar, seguramente a mais pequena avenida de Cascais e, creio poder afirmá-lo, do País inteiro, porque termina a escassos 200 metros (se tanto) mais acima, no cruzamento com a 25 de Abril. E a questão foi que a esse troço superior, a coincidir com o trajecto da antiga Estrada da Malveira, se optou, devido a motivações políticas, por deixar da mão o Ultramar e dar-se-lhe o nome do saudoso Engº Adelino Amaro da Costa.
Passava-se pelo Hospital dos Condes de Castro Guimarães, cuja entrada era a nascente e encontrava-se o cemitério, já fora do perímetro urbano, portanto. Esteve activo mesmo depois de, nos finais do século XIX, se ter construído o cemitério da Guia; mas foi definitivamente destruído para, por ocasião das comemorações do VI centenário da elevação de Cascais a vila, em 1964, ali se erguer o edifício dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento. Tinha portão alto, encimado por graciosa decoração em ferro forjado, a sustentar a cruz.
Bonito Velho era a designação (saída decerto de alguma divertida história…) do grupo de casinhas que se encontrava do lado direito de quem sobe. Todas juntinhas em torno da estância do Eugénio das Neves.
Vinha depois o depósito d’água. Deliberada a sua construção em sessão camarária de 6 de Julho de 1898, sendo presidente Jaime Artur da Costa Pinto, executou-a o construtor Manuel Mendes Correia, segundo projecto de Manuel Ferreira dos Santos. Consta esta informação na placa de mármore que, na Rua António Andrade Júnior, no Alto da Pampilheira, encima a porta do actual reservatório. Do antigo resta toda a estrutura poente, confinante com o Bairro da Assunção, tendo sido aproveitada a parte superior para implantar mui agradável recanto ajardinado. Direi que tanto o recanto como a construção poderão passar despercebidos para a maioria dos transeuntes e aposto que parte significativa dos moradores do bairro podem ter visto a construção, mas não têm a menor ideia do que ela representa. Ora, o depósito de água era, pela sua posição cimeira, um ponto de referência na passagem e no trajecto. Em torno dele, terrenos cerealíferos onde, no Verão, nos íamos abastecer de formigas de asa para as ratoeiras dos pássaros…
No vale para norte se ergueram as primeiras casas do Bairro Operário José Luís, havia a taberna do Peixoto e, acima, a Barraca de Pau, com o Bairro da Felicidade a nascente, um núcleo de casinhas, aconchegadas à padaria, cuja chaminé ainda subsiste. Felicidade era o nome da mulher do Zé Martins, o grande empreendedor desse aglomerado populacional, cuja taberna era ponto de encontro dos locais com alentejanos e algarvios que por ali se fixaram, por trabalharem nas pedreiras próximas. Ainda se mantém, a poente, boa parte das instalações que Zé Martins criou, com maquinaria (e uma bonita carroça antiga, por exemplo), a merecerem atenção.
Daí até às Quatro Estradas (actual cruzamento de Birre) era um troço bordejado de mulatas. E, claro, importa não esquecer que o piso era todo de macadame! Percorria-o, a princípio, a única carreira para essa zona, da Palhinha – Cooperativa Lisbonense de Chauffeurs, que ligava Cascais a Sintra, com desdobramento, em dias de mercado, até à Malveira.
Subsiste por aí um bem curioso microtopónimo – Almosquia – a recordar heranças árabes; mas Casal Queimado levava-lhe a palma, pela fama do comércio de flores, nomeadamente de rosas, dos Cartaxos, uma das grandes riquezas desta zona de Cascais, abastecedora do Mercado de Ribeira, em Lisboa.
O Mato Romão é hoje S. Gabriel, o padroeiro das telecomunicações, designação derivada de ali se haver instalado, com solene inauguração, a 28 de Junho de 1968, a Standard Eléctrica, fábrica de semicondutores e elementos electrónicos. Era, então, um mato esburacado pelas pedreiras.
De seguida, Aldeia de Juso (a que, como se disse, o Guia de Portugal se refere), Charneca (e os seus fornos de cal), Fartapão, Alcorvim de Baixo e Alcorvim de Cima e, finalmente, Malveira. Aí, novas placas do Automóvel Clube de Portugal (essas, felizmente, ainda se mantêm) indicam, para nascente, Barão e Lisboa (Barão era o nome do Linhó) e, para poente, Colares.
Na Malveira descansamos, embora aí já não haja, como se anota no Guia de Portugal, crianças a «saltar ao caminho com grandes ramos floridos, que oferecem a troco de algum dinheiro». Há, porém, outros atractivos: bons restaurantes, bons ares, e encosta acima até Janes, moradias de fino recorte arquitectónico. A vila de Cascais fica lá ao fundo, a… 17 km!
(actualização em 16/09/2020). Fernandinha Borges teve a gentileza de me chamar a atenção: a Estrela do Norte não era drogaria, mas mercearia; e uma amiga enviou-lhe o cartão que é meu privilégio partilhar com todos, até porque é justamente desta forma que se faz a história local. Quantos cartõezinhos deste género não serão habitualmente deitados fora, quando se vasculha numa gaveta e, afinal, são simples papelinhos destes que nos ajudam a ser mais rigorosos e a manter as nossas memórias!… Bem haja, Fernandinha!
Que belo texto e que prazenteiro itinerário que fui seguindo. Há cerca de quarenta anos no concelho, conheço os lugares que tinham então outra designação, mas não sabia das estações dessa estrada da Malveira, nem das casas de referência da altura que lhes emprestavam o nome.
O que mais me agrada nos textos de José d´Encarnação, para além da fluidez do discurso, é esta capacidade de nos levar, curiosos da história local, pelos caminhos antigos em lições que não pretendem sê-lo, já que convertidas em conversas amigáveis, a melhor forma de aprendizagem.
Saúdo a crónica e o autor, que muito admiro. E fico sempre à espera de bons nacos de prosa com muita informação à mistura.
Bem hajas, Helena, sempre atenta e simpática! Aprendi com os meus mestres e a eles devo a fluidez a que te referes. Confesso que estava um tudo-nada apreensivo acerca da oportunidade e do eventual interesse desta viagem pela EN 9-1, aludindo às ‘estações’ e ‘apeadeiros’ de outrora. Fico contente por estar a obter o resultado que desejava. Direi que o ‘motor de arranque’ da crónica foi, por um lado, a pena de se ter perdido a placa do início e, por outro, o facto de ainda estarem bem à vista as paredes poentes do antigo depósito de água, seguramente (penso eu), ignoradas da sua função pela maior parte dos habitantes do Bairro da Assunção. Quanto a outros ‘nacos’ de prosa… vamos ver! Bem hajas pela atenção dedicada!