Duas cómodas gigantes, do tempo da velha senhora, largadas assim no meio do largo. Estragadas, podres, feias como tudo. Que falta de civismo, consta que esvaziaram a casa de um falecido que não deixou família para trás.
Reparei nele, também dado ao abandono, um estilo oposto às cómodas. Dois tabuleiros apenas, um em cima, outro em baixo, ligados por uma estrutura em inox com rodinhas. Um bar com uma simplicidade e funcionalidade perfeitas, puro design. Imaginei-o logo ao lado da cama, a servir de mesa de cabeceira. Puxei-o para ao pé da porta e, se os tabuleiros estavam intactos, a estrutura tinha décadas de ferrugem, de uma ponta à outra.
Ainda hoje não sei o que me deu, sou um zero à esquerda em bricolage. Não gosto, não tenho o menor jeito. Mas rumei à loja de ferragens, trouxe um anti fungos, uma escova de aço, lixa e um spray primário. Comecei.
Percebi de imediato que era uma maratona, sou mais de sprints, mas abracei-a. Criei a disciplina das oito horas, final de tarde. Sentava-me cá fora na poltrona, mesa de apoio, lá aplicava o spray e depois, com força, ia raspando a ferrugem que dá logo sinal, um cor de laranja vivo. Era imensa, infinita… onde me fui meter!
Comprei spray Bala por sugestão de um vizinho. Resultou, embora tivesse que gastar muito produto. As vizinhas começaram a ter fé na recuperação. Paravam, diziam que já se notava os resultados e o optimismo delas reforçou o meu.
Lembrei-me finalmente de ir à net. Encontrei várias receitas domésticas. A que mais me impressionou foi a da folha de alumínio usada na cozinha. Cortar aos bocadinho, pôr em água e esfregar. Cumpri as instruções pouco convencida. Afinal era fácil, leve, o alumínio ia tirando a ferrugem com suavidade. As vizinhas também ficaram admiradas com a novidade, continuaram a torcer, aconselharam-me a guardar o bar dentro de casa, já estava apetecível para roubar. Segui o sábio conselho.
Recuperar o bar permitiu-me desligar por completo o cérebro, os mil pensamentos em looping. Tudo o que existia, dentro e fora de mim, era o desafio de apagar o cor de laranja.
Não apontei o dia em que comecei, não faço ideia de há quanto tempo trabalho nele, não tirei fotos para pôr no Facebook ou ir construindo uma narrativa. Sou só eu, a ferrugem e o vagar.
Quanto mais aborrecida estava, maior era a tendência para ir às partes mais difíceis, às fendas onde as peças encaixam. As rodinhas, então, tinham uma pornográfica camada de ferrugem e gordura mas, quanto maior era a dificuldade, maior era o sossego.
Depois veio o calor sufocante, às nove da noite ainda era impossível trabalhar, excepto se fosse num registo de mártir. Ficou uns dias dentro de casa, já no seu lugar, até com alguma utilização.
Depois veio o mau tempo, depois veio o trabalho, depois voltou o calor, depois aconteceu não sei o quê e… parei.
A tentar devolver vida ao bar, consegui ter paz, até prazer. Ao quebrá-la, já não pude voltar atrás. Voltei à restauração sim, mas tive de me obrigar. Ou eram os gritos dos miúdos, ou as vizinhas à janela, tudo o que até ali era invisível passou a desconcentrar-me. Quebrei a corrente.
Voltei a ele, agora às sete da tarde, os dias são mais curtos, e decidi não ficar presa aos pormenores. Fiz uma escolha. Optei pela imperfeição em vez de me arrastar na perfeição.
Os vizinhos já me tinham dito que não valia a pena continuar a esfregar as partes escurecidas, aquilo já não era ferrugem, eram os estragos que fez, deixando buracos, manchas feias, tatuagens. Lembrei-me das minhas. Já fiz as pazes com elas, fazem parte de mim, não sou perfeita, sou mais forte graças a elas. Algumas até foram esquecidas.
Pedi ajuda ao vizinho para aplicar o spray primário, tenho receio de pintar o móvel todo de cinzento, não deixei de ser uma nódoa em bricolage. Ainda espero tranquilamente por ele.
O spray primário é como a base na maquilhagem. Alisa as imperfeições, pinta as manchas negras, disfarça os buracos, as tatuagens, tudo. Não sara mas disfarça, devolve a perfeição, mesmo que não passe de uma camuflagem. No final terá de ser aplicado o spray de tinta prateada para o inox ficar com o brilho original.
É um bar do final dos anos 60, início dos 70. Sobreviveu muito tempo, foi-se deteriorando mas não perdeu a alma, resistiu. O trabalho de o trazer de volta não tem de ser perfeito, tem de ser feito.