Fado

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A noite deu um pontapé ao calor, há muito que o sino se calou e levou com ele as vizinhas palradoras. Sobra o silêncio das roupas penduradas nos estendais. Dançam devagarinho, numa coreografia singela, sem palmas no fim.

Sou grata pela casa fresca, o verão chegou à aldeia paredes meias com o centro da cidade. Quase ninguém dá por ela, apenas os turistas valentes que se enfiaram num avião para subir ao castelo.

Aos 16 anos tinha o sonho de sair da aldeia de cimento feita de caixas de fósforo gigantes onde as pessoas viviam empilhadas e os espaços de socialização resumiam-se ao elevador, à garagem e ao centro comercial redondo. Por muito que o percorresse voltava sempre ao mesmo sítio. Era um símbolo do que para mim era aquele bairro.

Numa saída à noite, deslumbrei-me com um candeeiro de parede no Bairro Alto, daqueles que espalham uma luz quente, enfeitiçante. Apaixonei-me. Era nesta Lisboa que queria viver, no reino encantado do coração da cidade.

Saí de casa dos pais, vivi em várias aldeias, nenhuma como esta, cheia de candeeiros enfeitiçantes, estradas por onde passaram carroças, casinhas de bonecas cheias de vida lá dentro.

Trinta anos depois, vivo na aldeia paredes meias com o centro da cidade. Foi um passa palavra que me levou ao reino encantado, estas casas não costumam aparecer no sites de imobiliário. Não, não é tudo perfeito, a casinha não é perfeita (mas serve para mim), há vizinhas que passam o dia todo a falar mal de tudo e mais alguma coisa, são amargas. E sim, há muitas outras que não conseguem dizer uma frase sem três asneiras, pelo menos. Volta e meia aprendo uma nova.

Ao longe, de vez enquanto, ouvem-se os putos dealers, também eles a falar bem alto, espantando a harmonia. Nunca entendi. Então o negócio da droga não deveria ser discreto? Ultrapassa-me. Mas, raramente incomodam, estão fora do perímetro da serenidade.

As ruas não são limpinhas e as ervas crescem até alguém pedir à junta de freguesia para as cortar. É curioso, a maior parte das pessoas trabalha para a junta ou faz parte dos órgãos, ou tem uma parceria qualquer. São fregueses muito participativos na gestão do bairro(s).

Aqui ainda se fala português e, como em todo o lado, há gente boa e genuína que te aceita pelo que és e não pelo que devias ser. São os vizinhos “mais que tudo”, vivem cá desde sempre, são eles que invertem a fama eterna da parte “suja”do bairro onde o vírus disse basta ao alojamento local.

A outra parte, mais bonitinha, tem muitas casas vazias à espera de turistas, não todas felizmente. Mas, seja onde for, há gente de todo o mundo a viver dentro deste melting pot.

A associação “Renovar” desenvolve há anos um trabalho de integração social notável, de se tirar o chapéu. Mais do que se tolerarem, as pessoas aprendem a viver umas com as outras e respectivas diferenças.

No dia em que fiz as mudanças, vi um carro parado neste largo que nega o acesso ao trânsito. Perguntei ao vizinho se podia entrar com o meu para descarregar.

 – Então não se lembra de mim?

Puxei a memória sem sucesso. Sorri.

 – Então, já falámos horas naquele bar!

Engoli em seco, agora era uma questão de dias até toda a gente saber que gosto de beber um copo, às vezes dois, vá lá. Ao virar a esquina dou de caras com o outro vizinho também meu conhecido desse tal bar que encerrava sempre com a marcha do bairro. Estivéssemos perto um do outro ou no lado oposto do bar, juntávamo-nos para dançar à moda antiga. Ele sabia a letra, eu aprendi o refrão. Era um clássico. E pronto, agora não há mais nada a fazer, a imagem está destruída. Por outro lado, se a imagem está destruída não há mais nada para destruir. Estou livre de mexericos. E gostar de boémia não é assim uma coisa tão má por aqui. A história deste bairro é feita da boémia, do fado que corre nas veias e vielas das ruas e vai direito ao coração.

Gosto de fado, da sua história, de se ter tornado Património Imaterial da Humanidade vindo de um gueto, de gente escorraçada pela sociedade, de rufias e mulheres de faca na liga, literalmente.

Gosto de ver que algo tão desprezado pelo sistema, à altura, seja hoje tratado com devoção e reconhecimento mundial. A Adelaide da facada (sistematicamente confundida com a Severa) e o Amâncio, a quem o pintor José Malhoa pagou, mais do que uma vez, a caução para o tirar da prisão, de forma a conseguir terminar o quadro, são um casal mundialmente conhecido, sem nunca ter saído daquela casa humilde, à entrada do bairro.

São eles os protagonistas da tragédia da vida e do alento desta música tida como menor. Música tão grande, tão forte, brutal. Foi esse poder que Malhoa captou para a tela. A incontornável dor do amor desfeito, a tristeza que o fado arrasta. Ninguém lhe fica indiferente, todos temos as nossas dores e amores.

“O Fado”, assim se chama o quadro, foi desprezado pela elite intelectual portuguesa. O seu reconhecimento veio do exterior, ganhou vários prémios e voltou a Portugal com o aplauso mundial. Está hoje no Museu do Fado em Alfama, é propriedade da Câmara Municipal de Lisboa.

Por aqui, há um restaurante que vai fazendo umas sessões, mas pouco mais, não se ouve muito cantar o fado. Mas foi aqui que nasceu, aqui permanecerá com vizinhas amargas e putos dealers a gritar “tia, tia” cada vez que a polícia aparece. O bairro permanece fiel à sua origem marginal.

O fado, esse, vai continuar a esgueirar-se pelas veias e vielas das ruas onde cantam rufias e choram guitarras.

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