Há muito, muito tempo, o Mundo era muito muito diferente. E no entanto, as praias de Lisboa já seriam praias ou estariam muito perto da orla marítima. Talvez não fossem praias de areia dourada, seriam zonas de mangal ou algo semelhante, terrenos lodosos quase de certeza.
Muito antes do bicho homem ter aparecido, quem se banhava por ali eram outros animais que já não existem, mas que deixaram rasto da sua presença.
Precisamente na praia da Parede, perto de Cascais, há um trilho de pegadas de dinossauro que, por milagre, está preservado até hoje.
A grande maioria das pessoas que vão até à Parede estende a toalha por ali e nem dá conta do chão que pisa. Mas é normal que seja assim. As covas ficam cheias de água salgada quando a maré baixa e as crianças brincam, chapinham na água. Quando a maré sobe, as pegadas ficam ligeiramente submersas.
Trata-se de um trilho curto, alguns metros apenas. O muro e os acessos à praia que ali foram construídos, certamente que taparam alguma parte desse trilho. Felizmente que sobrou alguma coisa para podermos ver, ainda. Parece que há um segundo trilho mas, confesso, sem alguém que me ajudasse não foi possível detectar esse segundo trilho.
Este trilho de pegadas de dinossauro de que falamos foi identificado como tal há relativamente pouco tempo. Uma equipa de investigadores portugueses e espanhóis estudou as pegadas apenas visíveis na maré baixa e após remoção substancial de areia pela maré, e atribuiu-o ao Albiano Superior, há cerca de 100 milhões de anos, um intervalo para o qual o registo fóssil mundial é escasso em saurópodes. Estes dinossauros deixaram pegadas no litoral de um mar de pequena profundidade e de águas quentes, pois, durante o Albiano, a Península Ibérica estava mais a sul e o clima era tropical.
Duas Linhas falou com o geólogo Pedro Nogueira, da Universidade de Évora, para tentar perceber como foi possível que estes vestígios tenham resistido ao desgaste do tempo durante 100 milhões de anos.
Pergunta: Levando em linha de conta os efeitos da erosão, das alterações provocadas pelos movimentos tectónicos, é razoável pensar que as pegadas tenham resistido 100 milhões de anos? Ou será que, por exemplo, nessa época a praia da Parede estaria longe do mar?
Resposta: Existem pegadas e outras marcas de locomoção desde períodos bem mais remotos que os 100 milhões de anos, só para dar um exemplo bem conhecido em Portugal, em Penha Garcia existem marcas de locomoção de trilobites que possuem mais de 450 milhões de anos. A condição para se preservarem é apenas que não tenham sido erodidas… A região da Parede situa-se num sector designado por bacia lusitaniana, que é uma faixa litoral que vai desde Espinho até Setúbal e nessa faixa a tectónica não afectou de forma significativa as rochas. No período em que as pegadas foram feitas a região deveria corresponder a uma zona litoral e com águas pouco profundas, daí os animais ao caminharem terem deixado as pegadas. Caso as pegadas tivessem sido feitas em solos secos, muito facilmente os agentes erosivos da altura as teriam apagado. Podemos ver o mesmo fenómeno hoje em dia, se um animal (ou o homem) deixa pegadas em solo, facilmente elas são apagadas pelo vento ou pela chuva. Se essas pegadas forem numa zona alagada mas pouco profunda é possível que se preservem pelo facto de novos sedimentos (lamas ou argilas) se depositarem por cima, fossilizando-as. Este é aquele princípio que os geólogos denominam de causas actuais que diz que se um fenómeno (causa) na atualidade provoca determinados efeitos, esse fenómeno no passado terá provocado os mesmos efeitos.
Pergunta: Que tipo de condições possibilitam que uma pegada impressa em lodo ou lama se mantenha preservada 100 milhões de anos?
Essas pegadas depois de fossilizadas por novas camadas de sedimentos (ainda não seriam rochas) ficariam preservadas. Muito provavelmente depois disso estiveram enterradas por centenas de metros de novos sedimentos que se foram depositando por cima na medida em que o oceano Atlântico foi abrindo e se tornando mais profundo. Quando o oceano recuou a erosão actuou e trouxe novamente esse registo para a superfície. É assim um acaso feliz ter havido a possibilidade de essas pegadas terem voltado à superfície e estarem hoje visíveis.
Pergunta: Será possível que estes vestígios se mantenham mais 100 milhões de anos?
Resposta: É muito pouco provável. Cem milhões de anos é um espaço de tempo que ultrapassa a compreensão humana. A erosão em um ou dois milhões de anos ou até bastante menos fará com estas pegadas e as rochas onde elas se encontram se transformem em minúsculos grãos de areia e sejam levados pelo mar. Outras pegadas que estão enterradas nas camadas de rocha por baixo destas aparecerão e também elas serão erodidas… Em conclusão mais ou menos moral, cabe-nos apreciar o que a natureza nos mostra de momento e aprender a ler o que as rochas nos contam da história e do nosso passado.
São pequenas covas insuspeitas de terem assim tanto valor em termos de História Natural. Ir até à praia da Parede para as admirar é uma espécie de tributo à Natureza. E deixem que o tempo faça o que entender com esses vestígios de tempos longínquos. Afinal, são apenas pegadas na praia.