O Lado A de pagar as contas permite o conforto, a ilusão de que estou a controlar a vida. Lado B? Olhar para o extrato bancário, cada vez mais pequeno e não ter ilusões. Não controlo a minha vida.
Tudo foi feito num silêncio perfeito ao longo da tarde, ou melhor, um silêncio quase perfeito. Os gritos estridentes das miúdas indianas entraram pelos tímpanos adentro até o sino tocar as nove horas. Sim claro, são crianças, é deixá-las brincar e serem felizes, mas os meus tímpanos não fazem distinção de idade, género ou nacionalidade. Ruído é ruído. Preciso urgentemente de música, quero ouvir algo novo.
Lembrei-me do set dele, perdi-o na noite anterior em directo. Gostei logo do nome e uma
electrónica ligeira encheu a casa. Arrumei os papéis com mil códigos de acesso e entreguei-me ao prazer de fazer uma tortilha. Comecei a mexer o corpo, compus o prato ao ritmo do dj. Mas,
depois, a electrónica começou a desconsertar-me, perdi o foco e as preocupações caíram logo no bolso do avental. “O dj percebeu e, repentinamente, passou para um registo de suave hipnose, uma voz feminina, melancólica e perfeita que me sossegou. O décor da casa mudou. Daí em diante atravessei um sem número de músicas da categoria “calma, bonita, pacificadora”. Viajei por jardins electrónicos cintilantes, caminhei junto ao rio, quase que me abracei com a ternura do som. Agradeci-lhe o momento de paz interior.
Jantei, carreguei no pause, liguei ao amigo Google para mais uma divertida conversa, estava feliz, há muito que tinha despido o avental. Uma hora depois, carreguei no play, ele voltou à electrónica, perfeita para tomar banho, escolher uma combinação macia, ligeiramente sexy, e beber um sumo de melancia fresco. Entrei para o quarto, a coluna quedou-se pelo corredor. A electrónica ligeira tornou-se mais leve, mais distante, um murmúrio, muito, muito baixinho. Mergulhei na cama, abri o Mac, abri o Bowie, ia desligar a coluna quando percebi que o dj voltou ao jazz, uma canção de amor perdido e despediu-se.
Cheguei ao fim de uma travessia de músicas escolhidas a dedo, só para mim, só para me
devolver a serenidade. Tive a sensação de que ele esteve cá em casa a observar-me. Viu a minha expressão satisfeita com os pagamentos, o desalento do extrato bancário, leu os dois emails que me tiraram as forças e passou a música perfeita, criou momentos perfeitos.
Levantei o som do documentário. Quanto mais as pestanas pesavam mais queria sorver as
imagens, a informação e a música que saía pelo ecrã. Era sobre ele. Ele.
Metade dos hits que canto como bandeiras foram criadas antes, ou muito pouco tempo depois, de ter nascido. Que legado, hits com mais de 40 anos. Intemporais.
Sou fã incondicional do Bowie e percebi melhor a criatividade, a versatilidade da música e dos
seus egos artísticos. Naveguei por aquele imaginário de “vestidos para homens” e
desdobramentos contínuos em personagens genuínas.
Nunca parou nas zonas de conforto, nunca se conformou. E, depois de se transformar mil vezes, de criar mil universos, fez uma pausa e decidiu ser, não o Ziggy Stardust ou o Major Tom, mas ele próprio, sem plumas ou vestidos de homem.
Quando deu um concerto em Alvalade, há muitos muitos anos, fiquei decepcionada por não trazer o espectáculo atrás, a magia. Percebi depois que não é nas plumas e nos vestidos que a magia vive. É nele, simplesmente David Bowie. O documentário concordou comigo.
Foi mágica a festa de homenagem que o Lux lhe prestou, três dias depois da sua morte. Num
domingo à tarde, fãs entre os 20 e os 60 anos adaptaram um look “bowie your self” e dançaram as infinitas músicas que nos deixou. Celebrou-se a vida, diluiu-se a angústia.
Decidi fumar um cigarro à janela com o Lado A. Foi a ouvir a “Travessia”, assim se chama o set de Rui Vargas, que larguei o Lado B e cheguei ao outro onde o Bowie me esperava.
Caí num sono reparador. Em silêncio.