Very Typical

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Parece que a estação mudou. Quando o dia já caminha a passo largo mas o sol ainda não se levantou há uma paz cinzenta, a brisa esfria a voz dos outros, são murmúrios apenas, e a manga cava parece um disparate.

Vou andando pelo coração da cidade em forma de batalha naval. Numa montra vendem-se batas para donas da casa, vestidos balão para bebés e roupa interior feita de malha. Noutra, cheia de pormenores cintilantes, bonecos modelos usam roupa estilosa dos anos 1980. Há uma loja vazia de typical portuguese food, no outro lado da rua, atrás de um camião de mudanças, os homens fumam cigarros na primeira pausa da manhã. Encontro o meu destino ao mesmo tempo que o Sol, chegamos ambos aos correios e ao verão.

Resguardo-me numa pequena sombra para fumar, desvio-me um pouco da fila de cinco pessoas mascaradas. Eu só me mascaro em espaços fechados. Quero apagar o cigarro, olho à volta, olho para a rua seguinte, já com esplanadas meio ocupadas por gente que se esconde do calor. Atravesso-a, apago o cigarro no chão, apanho a beata e coloco-a no caixote do lixo de um café. Parece que os cigarros estão fora de moda. Depois, ao fundo, vejo finalmente um caixote/cinzeiro e é aí que reparo na torre “Big Ben” em aço fundido, cheia de pormenores, mas tão simples o mesmo tempo. Parece um míssil que caiu ali e não explodiu. Deram-lhe o nome de uma santa, talvez tenha sido uma santa que o criou para nos elevar do tão miserável ouro até a um jardim fértil. Sobe e desce todos os dias, é o elevador mais original da cidade.

Chega a minha vez, afinal não trouxe a encomenda. Bolas! Saio dos correios, entro na rua prateada. Gosto do cintilante e elegante metal, ao contrário do piroso brilho do ouro. Numa das esquinas a loja das noivas está vazia, parece que fugiram todas do altar sem devolver os vestidos. A loja, agora nua, mais bonita do que nunca, deixou de vender histórias de príncipes encantados.

O chão é de calçada portuguesa, única no mundo, especialista em quedas e trambolhões. Já fiquei com um dos dentes da frente a abanar por causa dela, mas é como um homem que nos dá para trás e, mesmo assim, corremos atrás dele, queda após queda, e nem as maleitas nos fazem desistir. Até ao dia, o dia em que arriscamos ser atropeladas na estrada perigosa, continuar em frente e, passo a passo, largar esta calçada enfeitiçante, elegante, tão sedutora.

Flaneio pela Baixa, pelos menus em cinco línguas, pelas lojas very typical. Há espaço para os raios de sol, háespaço sem se ouvir 50 mil línguas. O vírus devolveu-nos a Baixa. Dizem que é mau para a economia, dizem que o mundo vai colapsar. Dizem muitas coisas, tantas, que já não dou ouvidos ao que se diz. Nesta manhã em que acordei antes do Sol, a cidade é minha e não há dinheiro que pague isso. Subo à rua dos saldos, vou ter com o meu poeta preferido, desço aos ecos do largo da ópera. Sinto-me livre. O vírus matou o turismo, tem até a ambição de nos matar a todos. Enquanto o perigo sobe e desce, subo e desço as colinas da cidade mais bonita do mundo porque é a minha. És tão boa Lisboa.

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