A burocracia não faz luto

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Quando faleceu um familiar muito próximo, fiquei logo com a sensação de que antes de poder começar a fazer o luto, iria precisar de enfrentar o Adamastor das pendências burocráticas vigentes. Só não sabia que esse Adamastor mais parece uma Hidra de Lerna com um sem-fim de cabeças pronto a sugar toda a energia positiva (e algum bem-estar psicológico, já para não falar do dinheiro) de alguém que já tem o que enfrentar. Acontece que, para informação dos leitores, há um sem-fim de regras a seguir para cumprir com o que popularmente se chama “dar baixa do número de contribuinte”.

Tendo o óbito ocorrido nos fins de Maio, consegui o milagre aparente de ir à repartição de Finanças da minha área de residência em meados de Junho. Recordo que a lei é clara: existe um prazo de 90 dias a contar da data do óbito para se fazer isto, sob pena de serem aplicadas coimas. Avisei a empresa onde estou a trabalhar, porque apesar de estar em tele-trabalho, é conveniente não abusar da sorte sobretudo quando se é uma trabalhadora temporária que não sabe se vai ter emprego no ano que vem. Preparei alguns documentos aconselhada por uma advogada e mesmo com a marcação de dia e hora certos ainda tive de esperar. Que documentos exige o Código do Imposto de Selo? Certidão de óbito e cartão de cidadão da pessoa falecida, cartão de cidadão do (s) herdeiros (s), certidão de registo predial de bens imóveis que a pessoa falecida tenha deixado, documentos a atestar a existência de bens móveis, documentos que atestam a existência de contas bancárias e de depósitos a prazo (caso haja), para dar alguns exemplos. Chego lá e surpresa! A caderneta bancária e os extractos dos movimentos 60 dias antes do óbito, obtidos via internet, não eram aceites “porque era a lei”. A funcionária atendeu-me a despachar, tanto era o trabalho que ela teria… ou não. Ou seja, eu tive de ir ao banco pedir a declaração a mostrar tudo isso. Assim o fiz. A declaração custou-me 76 euros. No banco do Estado. Levei duas semanas para que ma dessem e ainda tive de abdicar de uma hora de almoço para a ir buscar, porque a agência em causa tinha no máximo dez por cento do pessoal. Para uma operação (assinaturas digitais, pagamento em dinheiro, confirmação do pedido, etc.) que nem dez minutos levou, tive de esperar quase quarenta minutos. Quando eu falei isso à funcionária que me obrigou a esperar esse tempo todo e que não queria retomar o horário de trabalho atrasada, ela disse que o problema era meu. Esqueceu-se de que o (mau) funcionamento dessa agência bancária tinha tornado meu um problema que à partida nem o deveria ser.

Entretanto, descobri uma coisa: fica mais fácil tirar uma selfie com o nosso Presidente da República do que marcar uma ida às Finanças. Mesmo indo ao site da Autoridade Tributária, dias houve em que só na Amadora, ou em Sintra, ou mesmo em Mafra se conseguiria uma marcação. O que estava fora de mão e fora de questão para mim. Lá consegui marcar para dia 23 de Julho a ida a uma repartição, desta feita em Lisboa, e preparei-me como se fosse para um exame de Direito Fiscal.  Lá chegada mais cedo do que a hora aprazada, não fosse o azar da descoordenação dos transportes públicos tecê-las, revi os documentos enquanto esperava a abertura da dita repartição; acabei por entrar, desinfectei as mãos a pedido da funcionária, e depois de quinze minutos a trocar impressões com outra senhora contribuinte que estava à espera de vez para tratar de outro assunto, chamaram-me. Desta vez, no meio do azar, tive sorte: a funcionária foi afável e compreensiva. Explicou mesmo que não valia a pena preencher os quatro formulários respeitantes a este procedimento uma vez que ela própria ia inserir os dados no sistema informático (dados esses constantes nos documentos que por lei é obrigatório entregar) – algo que nem todos os funcionários explicam, como aprendi à minha custa. Entre assinaturas de vários documentos (que eram enfiados a custo debaixo do espaço milimétrico entre o tampo da secretária e a placa de acrílico, obrigatória nestes tempos) e o tirar de várias dúvidas, voltei a fazer novas descobertas: que a dificuldade de obter marcação na repartição de Finanças na nossa área de residência “são outros quinhentos” e que até nova ordem, o livro amarelo para fazermos reclamação de entidades do Estado está suspenso. Ou seja, o direito de reclamar se nos sentirmos mal atendidos ou prejudicados numa das muitas repartições ou departamentos da Administração Pública ficou “de molho”. Ainda bem que, na semana anterior, sem querer acreditar na kafkiana dificuldade em arranjar marcação para uma repartição de Finanças perto de casa, enviei um email ao gabinete do Secretário de Estado Adjunto e dos Assuntos Fiscais a relatar a situação; ao que sei, esse email foi reencaminhado para a Autoridade Tributária e Aduaneira, onde aguarda resposta.

Em resumo, temos de estar preparados para estas questões como se fôssemos para uma guerra e ainda temos de ser mais papistas do que o Papa. Tudo indica que isso de fazer o luto “é para meninos”, uma vez que a máquina do Estado não pode parar… de obter dividendos dos costumeiros contribuintes. Porque há uns que são mais contribuintes do que outros.

Às vezes penso, e digo: Kafka era português. Só pode. Leiam o livro O Processo e terão uma noção.

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