Os filhos das mágoas

A família tem de ser ideal e tem de ser eterna? Não, em absoluto. O que tem de ser eterno é o amor e o respeito por aqueles que nos nasceram e a destruição dos seus modelos por algum tipo de coerção ou violência não faz parte desse amor. O afeto por um filho permanece para lá de uma relação que chegou ao seu limite.

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Não basta dizer que o melhor do mundo são as crianças. Não basta desejá-las. Não basta apreciar o seu encanto de bebés e os primeiros triunfos do crescimento. Não basta amamentar, não basta cuidar, nem sequer basta amar enquanto dura a relação afetiva dos progenitores. É sobretudo necessário amá-las depois também, em tempos de crise, especificamente na crise que é o fim de uma relação entre um pai e uma mãe que já não se querem.

A vida é feita de escolhas e de acasos. Entre umas e outros, as circunstâncias mudam e os filhos são afetados por estas quando se veem divididos por duas casas e por duas famílias. Por esta razão, e por si só, qualquer tumulto que passe além de uma mudança relativamente pacífica significa mais dor. O melhor que os pais podem fazer aos seus rebentos é respeitarem-se entre si, é fazerem um esforço para mostrarem o melhor de si, é gravarem nos filhos a memória perene de um pai ou mãe amigos e solidários. Quando isto não é possível e o lado passional prevalece, os erros cometidos pelos adultos são puros atos de egoísmo.

Quando pais e mães usam as crianças para atingir o outro, por separação, divórcio ou o que quer que seja, isso é um comportamento passional. Quando pais e mães põem o seu próprio interesse de vingança do outro à frente do bem estar das crianças isso é um comportamento passional. Quando pais e mães impedem o outro de ver as crianças num dia especial, por exemplo, apenas porque lhes dá uma sensação de poder isso é um comportamento passional. São gestos extremos em que o amor pelos filhos é colocado em segundo plano na pirâmide das emoções. São gestos que podem marcar definitivamente uma criança, lança-la numa confusão de sentimentos que estraga a ideia do profundo conforto e amparo com que a mesma perceciona a sua família.

Quer isto dizer que a família tem de ser ideal e tem de ser eterna? Não, em absoluto. O que tem de ser eterno é o amor e o respeito por aqueles que nos nasceram e a destruição dos seus modelos por algum tipo de coerção ou violência não faz parte desse amor. O afeto por um filho permanece para lá de uma relação que chegou ao seu limite. Não há grandes dúvidas sobre isso e, no entanto, são frequentemente feias muitas palavras e acções que são ditas ou feitas durante o processo em que se toma decisões futuras, nomeadamente sobre a custódia ou a guarda dos menores. Palavras e ações que decorrem da procura de uma vitória moral sobre o outro, especialmente quando o final do relacionamento não foi da vontade de ambos. A guerra pelos direitos e a guerra pelos afetos instalam-se como tentativa de ganhar os filhos, qual troféu que se consegue através de uma competição dificil. Todos conhecemos histórias destas, de diferentes formas, em diversos lugares e tempos.

Não precisamos de falar em cultura ou meio que o promova. Os comportamentos de índole passional extravasam culturas, géneros e o background socioeconómico. Observamo-los em qualquer cultura, independentemente da lei ser favorável ou não,  em qualquer extrato social, em qualquer género. Adotar uma postura passional é não pensar nas consequências, é colocar o primário à frente do discernimento. É, e neste caso, focar a divisão nas mágoas e nos ressentimentos e não no bem que se tem em comum.

As crianças não têm de ser armas de arremesso entre os pais. Não podem mas continuam a sê-lo. O diálogo é difícil, o entendimento também e o perdão nem se fala. Mesmo em nome do fruto de algo que foi o resultado de uma união antes. Ora é isto que temos, enquanto adultos, de fazer – proteger e amar incondicionalmente quem nos nasceu sem pedir e quem nos deveria ter tornado melhores. Na saúde e na doença, na bonança e na crise, os filhos são eternos e é dessa forma que não os devemos instrumentalizar em favor do nosso orgulho ou da nossa desilusão.

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