Como historiador – ensinaram-me os Mestres – devo respeitar as mentalidades e procurar identificar, em cada época, quais os usos e costumes, compreendê-los e explicá-los.
No tempo dos Romanos, o escravo até podia exercer funções importantes como a de villicus (o caseiro da herdade, diríamos hoje), médico, professor… E com o pecúlio que angariasse podia facilmente comprar a sua liberdade. Aquando dos Descobrimentos, houve a mão-de-obra escrava, nas condições que se conhecem. A escravatura do século XXI tem outras versatilidades – oh! se tem!… Compra-se e vende-se por milhões! Paga o escravo para ser metido num escaler, na esperança de que a Sorte o proteja!…
Assim, a Arte. Carece de ser integrada no tempo que a viu nascer, eco – como é – de íntimas pulsões, mensagens de ternura e de revolta, de intervenção crítica ou de apaziguamento…
Daí que eu tenha puxado a título a opinião exarada pelo conceituado Miguel Torga, quando visitou, a 30 de Maio de 1949, uma exposição no Museu Nacional de Arte Antiga:
«Visita à Josefa de Óbidos, que recebe durante alguns dias numa das salas das Janelas Verdes. Grande e penosa desilusão! A senhora fazia crochet com os pincéis. Que falta de imaginação, que miséria de desenho, que geleia, tudo aquilo! […] Enquanto um baboso se extasiava diante dum menino Jesus rechonchudo, que parecia uma trouxa de ovos, raspei-me.
Raça de portugueses que não dá um pintor que se aproveite!» (Diário V, Coimbra, 1951, p. 23-24).
Compreende-se a frase de Miguel Torga, na época em que a escreveu, de acordo com a sua mentalidade na altura. Perante a obra de arte, a primeira reacção é sempre emotiva: gosta-se ou não se gosta; transmite-nos uma mensagem de beleza ou não. Vem depois a repulsa ou a tentativa de compreensão, de enquadramento na época. A Beleza é eterna; a sua apreensão, subjectiva – não fora verdadeiro o adágio «quem o feio ama bonito lhe parece»!
Caso a pandemia não nos houvesse atacado, estaríamos hoje a admirar em Cascais a obra religiosa de Josefa de Óbidos (1630-1684), porque a Fundação D. Luís I programara essa exposição para junho. Fica adiada para inaugurar a 8 de Dezembro; mas valerá a pena dedicar-lhe desde já algumas linhas, mais não fosse porque quem vai à matriz de Cascais lá pode admirar oito dos quadros mais famosos da artista: Seis evocam cenas da vida de Santa Teresa d’Ávila, «A transverberação de Santa Teresa», de 1673, por exemplo; os outros dois são: «A Sagrada Família», de 1672, e «O Menino Jesus Salvador do Mundo».
Segundo Vítor Serrão, as telas da matriz cascalense terão procedido do extinto Convento dos Frades Carmelitas de Santa Teresa de Jesus; segundo outros, poderão ter sido pintadas para o vizinho Convento dos Carmelitas Descalços de Nossa Senhora da Piedade (actual Centro Cultural de Cascais)! Seja como for, para um ambiente religioso, sereno, de reencontro com imagens envoltas num halo sagrado. Veja-se esta Nossa Senhora de Menino ao colo. Atente-se no gracioso pormenor do jorro de leite do úbere seio nu de Maria para a boca do Menino!…
Podem discutir-se a técnica pictórica usada; os cânones artísticos que a pintora seguiu; o concreto realismo da figuração ou o seu carácter simbólico… Mas, no fundo, o mais importante não é pararmos uns instantes a admirar uma obra de arte?
Fica a admiração aprazada para Dezembro na Casa das Histórias Paula Rego!
Gosto muito dos textos de José D´Encarnação que tenho o privilégio de conhecer e que além de um académico notável, é também um ser humano de superior qualidade. Aprendo sempre muito com a sua erudição, com o refinamento do humor que povoa os seus escritos e com o incitamento constante à procura das coisas que, não sendo exuberantes, são da maior importância.
O comentário do grande Miguel Torga sobre a pintura de Josefa de Óbidos fez-me sorrir, tanto como quando o li da primeira vez. Aquela imagem de “…um baboso (que) se extasiava diante de um Menino Jesus rechonchudo, que parecia uma trouxa de ovos…” é fantástica. Só José D´Encarnação poderia aproveitar esses detalhes humorísticos e com eles tecer a prosa que nos delicia.